Democracia não é só votar de tempos em tempos
O mais recente relatório Democracy Index, publicado em fevereiro com base em dados de 2024 pela Economist Intelligence Unit, confirmou o que já vinha sendo sentido nas ruas e nos parlamentos: a democracia perdeu espaço no mundo, mesmo com mais de 4 bilhões de pessoas indo às urnas no ano passado. Em 75 países, a nota média global caiu para 5,17 — o menor patamar desde 2006. Apenas 25 países foram classificados como “democracias plenas”. Eles abrigam apenas 6,6% da população mundial. A maior parte vive sob regimes autoritários, democracias com falhas ou modelos híbridos, onde o voto existe, embora não haja garantias plenas de liberdade ou pluralismo.
Em 2024, 83 países pioraram suas notas. Apenas 37 melhoraram. Entre os pilares analisados — como processo eleitoral, funcionamento do governo, participação política, cultura política e liberdades civis — o pior desempenho foi o funcionamento do governo, com média de 4,53. Desde 2008, essa pontuação global caiu 0,47 ponto. Liberdades civis também recuaram, com queda de 1 ponto. A participação política estagnou. Continuamos votando, embora muitas vezes sem ver resultado prático.
El Salvador é um exemplo de alerta. O presidente foi reeleito após mudar a Constituição de forma não prevista, controlar o Judiciário e concentrar poder. A popularidade não anula o problema: as instituições foram desmontadas. Em Bangladesh e Rússia, opositores sequer puderam disputar eleições. Em contextos assim, há voto, embora não exista escolha real. Democracia exige imprensa livre, respeito aos Poderes e instituições que funcionem de verdade.
No ranking de 2024, o Brasil caiu seis posições e agora ocupa o 57º lugar, com nota 6,49. Continuamos classificados como uma democracia com falhas. Nosso processo eleitoral segue forte — nota 9,17. Também vamos bem em participação política, com 7,22. Contudo, os dois pontos frágeis saltam: cultura política (4,38) e funcionamento do governo (5,00). Temos eleições legítimas, embora instituições que muitas vezes não prestam contas, não funcionam com eficiência e não geram confiança. A proibição da rede social X (antigo Twitter) pelo STF contou negativamente para o Brasil.
Esses dados me preocupam. E não falo apenas como professor de Teoria Geral do Estado ou como alguém que se inspira em Robert Dahl — cientista político que definiu a democracia como um sistema de regras reais, sustentado por participação, liberdade e responsabilização. Falo também como ex-vereador e ex-presidente da Câmara Municipal de Belo Horizonte. Dahl chamava isso de poliarquia: um conjunto de instituições que permitem que o povo governe. Ele advertia que a democracia não some de uma vez — ela se esvazia quando não é cuidada.
É por isso que, durante meu mandato, trabalhei para que a democracia fosse mais do que um rito. Se o funcionamento do governo está em crise, é preciso abrir o orçamento. Fizemos isso com o “BH pra Você”, plataforma criada na Câmara que mostra, em tempo real, como a prefeitura arrecada e gasta. Qualquer cidadão pode ver onde estão os investimentos. É o tipo de transparência que dá poder ao eleitor e aproxima o Estado de quem paga por ele.
Também é essencial investir na cultura democrática desde cedo. Por isso, propus — e vi ser aprovada — a lei que leva noções de direito, cidadania e empreendedorismo ao contraturno das escolas públicas de tempo integral. Pela primeira vez, jovens da rede municipal passaram a ter contato com temas como Constituição, direitos, deveres e respeito às leis, numa parceria com a OAB. Educação cívica não é doutrinação — é formação para a vida em sociedade. Se queremos que as próximas gerações defendam a democracia, precisamos ensinar-las a reconhecê-la.
Democracia não é só votar. É garantir liberdade para se expressar, regras justas, instituições que prestem contas e um povo que participa. Os dados mostram que tudo isso está em risco — no mundo inteiro. E o Brasil não é exceção.
Se queremos manter a democracia viva, precisamos cuidar dela todos os dias. Precisamos cobrar, fiscalizar, participar, escutar até quem pensa diferente. Porque, como mostram os números — e como Dahl já nos ensinava —, a democracia pode até parecer sólida. No entanto, se a gente não prestar atenção, ela encolhe. E quando percebe, o povo já perdeu mais do que imaginava. De novo.