Diplomacia, soft power e relações EUA-Brasil
A relação entre Brasil e Estados Unidos da América possui mais de dois séculos. Ao longo desse tempo, houve momentos de cooperação e respeito, assim como episódios graves de desconfiança e intervenção. Um dos mais criativos gestos de aproximação surgiu em plena Segunda Guerra Mundial, quando os estúdios de Walt Disney, com apoio direto do governo americano, criaram o personagem Zé Carioca para simbolizar a amizade entre os dois povos. O objetivo era conquistar corações e mentes com humor e leveza, além de consolidar uma aliança diplomática e militar contra o Eixo de Adolf Hitler e Benito Mussolini. O mesmo aconteceu com Panchito, um galo animado criado para representar o México.
O papagaio brasileiro fez sua estreia em “Saludos Amigos” (1942), ao lado do já famoso Pato Donald. Dois anos depois, no longa “Você Já Foi à Bahia?”, os dois circularam por paisagens tropicais, dançaram samba e tomaram cachaça em cenários brasileiros.
A animação, parte da “política de boa vizinhança”, serviu como instrumento de soft power para aproximar americanos e brasileiros. Poucos meses depois, o Brasil se aliava formalmente aos Aliados, enviando tropas à Itália e participando, após a vitória, da fundação da Organização das Nações Unidas. Assim se formava a tríade pan-americana do soft power animado: México, Brasil e Estados Unidos, os três unidos pela diplomacia e pela cultura.
Essa fase marcou um dos pontos altos da nossa relação. Brasil e Estados Unidos da América atuaram juntos na construção de uma ordem mundial baseada em cooperação democrática e instituições multilaterais. O contraste com o que viria a seguir revela a importância daquele gesto simbólico. Em 1964, no auge da Guerra Fria, os Estados Unidos da América apoiaram diretamente o golpe militar no Brasil. A operação Brother Sam preparou navios de guerra para intervir em apoio aos conspiradores e golpistas. Não foi necessário disparar um tiro, porém o sinal de ingerência foi inequívoco. Assim ruiu o espírito da boa vizinhança, substituído por autoritarismo e desconfiança.
A reconciliação viria apenas nos anos 1990, com Bill Clinton e Fernando Henrique Cardoso. Ambos enxergavam a democracia como projeto internacional e a moderação como valor estratégico. FHC foi recebido na Casa Branca como parceiro, não como subordinado. Clinton o definiu como “lutador pela democracia”, e juntos celebraram a convergência entre as duas maiores democracias do continente. No Brasil, o presidente americano trocou o saxofone por uma bola de futebol. A agenda era diversa: comércio, direitos humanos, integração hemisférica e meio ambiente. Nenhum tema era imposto. Essa relação respeitosa reabilitou o espírito de cooperação e sepultou, ao menos por um tempo, o velho fantasma da intervenção. O mesmo aconteceu, na sequência, com Lula e Obama.
Hoje, em tempos de instabilidade e populismo, essa história oferece lições valiosas. Tanto Brasil quanto os Estados Unidos da América enfrentaram ataques às suas instituições democráticas. A invasão do Capitólio, em Washington, em 6 de janeiro de 2021, e os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023 em Brasília mostram que democracias não são imunes ao delírio autoritário. Em vez de fortalecer laços, figuras como Donald Trump preferem a desinformação, o isolamento e a retórica hostil. O presidente americano não entendeu o que o Pato Donald já sabia: diplomacia se faz com afeto, cultura e respeito.
Líderes passam. O que permanece são os símbolos. Pato Donald e Zé Carioca sobreviveram aos ciclos eleitorais, às ditaduras e às guerras. Continuam sendo ícones de uma ideia: a de que é possível dialogar com leveza sem perder a firmeza, defender a democracia sem arrogância e construir pontes sem ameaças. Essa é a lição que o personagem animado pode oferecer ao político inflamado. Se Donald Trump quiser mesmo fortalecer a presença global americana, talvez precise começar ouvindo seu homônimo de bico laranja.
A verdadeira grandeza não está na imposição, e sim na inspiração. E há mais sabedoria na criação do Zé Carioca do que em muitos discursos diplomáticos. Donald Trump, você já foi à Bahia? Não? Então vá!