Qual será a sua próxima viagem? Permita-me sugerir-lhe que você conheça um lugar que passou por uma forte crise econômica onde a população começou a bater panelas contra o governo.Além disso, as paisagens naturais são deslumbrantes! Soa familiar? Acho que os islandeses tem uma lição a ensinar à muita gente. A Islândia renasceu mais forte da crise econômica que o mundo vivenciou sete anos atrás.
O que chamamos democracia começa a assemelhar-se tristemente ao pano solene que cobre a urna onde já está apodrecendo o cadáver. Reinventemos, pois, a democracia antes que seja demasiado tarde.
José Saramago
A – Em outubro de 2008, diante da crise, o governo islandês decidiu nacionalizar os três maiores bancos do país. O mercado desabou, tal como a confiança das pessoas nas ações dos seus governantes. A bolha financeira estourou, o desemprego triplicou e os boatos sobre o desabastecimento dos supermercados começaram a tomar conta das ruas. A moeda derreteu, a bolsa de valores caiu 95% e quase todo empresário quebrou.
B – As pessoas foram para as ruas. O que começou como conversas entre um cidadão e outro, seja ao vivo ou pelas mídias sociais, rapidamente se transformou em demonstrações semanais envolvendo milhares. Em cinco meses, as exigências dos protestos foram atingidas: o governo, o comando do Banco Central e o diretor da Autoridade de Supervisão Financeira haviam renunciado.
C – Uma pequena escala no direito constitucional comparado. A Islândia é uma república do tipo dualista. Ou seja: há um chefe de estado e um chefe de governo. Quem possui mais de 18 anos, entre os mais de trezentos e vinte mil habitantes do país, vota para escolher o presidente. O presidente possui um mandato de quatro anos podendo ser reeleito sem limites. Quem exerce a chefia de governo é o primeiro-ministro, escolhido pelo presidente entre os demais representantes do poder legislativo. O parlamento islandês (Alþingi) possui 63 cadeiras. 54 delas são eleitas divididas em 6 regiões. Ou seja, 9 deputados são eleitos em cada distrito de maneira proporcional. Os 9 assentos restantes são chamados de cadeiras de igualamento: os partidos menos votados ganham representação e asseguram a participação da minoria. E acrescento três curiosidades: o presidente do país pode ser eleito sem partido, o poder legislativo foi criado em 930 e a ex-primeira-ministra foi a primeira chefe de governo assumidamente homossexual da União Européia.
D – Os protestos garantiram ao governo seguinte à força política necessária para abrir investigações contra o governo anterior. Vários políticos e banqueiros foram condenados e presos por crimes como tráfico de influência e manipulação de mercado. Ou seja, gente importante foi para trás das grades! O primeiro-ministro que renunciou foi considerado apenas negligente pela Corte Constitucional do país ao ser responsabilizado por não cuidar direito de uma crise que muitos já conseguiram prever.
E – A Islândia agiu em certa medida como a Grécia num primeiro momento: convocou dois referendos para a população decidir se as dívidas externas deveriam ou não ser pagas, impôs limite da movimentação financeira e tentou controlar os bancos. Nada funcionou completamente nesse sentido. Quando o governo decidiu racionalizar os gastos e modificar seu comportamento diante da crise, o resultado apareceu. Em março desse ano, o Fundo Monetário Internacional considerou o desempenho econômico islandês um dos melhores ao se considerar os últimos sete anos. Claro, o chamego contou com o fato de que os islandeses pagaram o FMI com adiantamento.
F – Contudo, em maio de 2013, os políticos que tinham perdido poder com a crise, voltaram a se fortalecer. Uma parcela da população ficou muito preocupada com os efeitos que poderiam ser gerados através de medidas já rejeitadas. Uma vez conectada, a sociedade em rede não se desconecta facilmente. O maior ganho com a crise foi a capacidade desenvolvida pelos islandeses de agir em sociedade. Um verdadeiro “cluster” de cidadãos se dedicou a melhorar os mecanismos democráticos. O que começou como uma reforma político-financeira, continuou como uma evolução no seio da sociedade civil. Os islandeses começaram a se perguntar por que razão deveriam tratar as moléstias de um sistema corrupto e doente, quando a própria doença em si poderia ser eliminada.
G – O Partido Pirata (isso mesmo!) possui atualmente três assentos (dos 63) no parlamento. Em março, essa legenda, que defende transparência, direitos civis e democracia direta, começou a despontar como o partido com maior apoio popular da Islândia! Os eleitos dizem que, após a crise, a demanda da sociedade por um novo pacto social e novo tipo de maneira de se exercer a democracia só aumentou.
A democracia é o governo do povo, pelo povo, para o povo.
Abraham Lincoln
H – Em 2010, o país fez algo que nenhum outro país fez antes. O poder legislativo iniciou um processo constituinte onde cidadãos comuns poderiam participar. Uma nova constituição foi escrita para a Islândia. O verdadeiro conceito de revolução é a mudança de uma ordem jurídica estabelecida. Podemos afirmar que os islandeses podem optar por uma revolução. O documento, se for implementado, coloca direitos humanos no cerne do processo democrático, reconhece a sustentabilidade como princípio e aumenta muito o poder do cidadão através de referendos, poder de veto e capacidade de legislar com mais facilidade. O seja, a democracia deixa de ser sólida para ser mais líquida (e talvez gasosa)…
I – O processo foi iniciado com uma assembleia composta por 950 cidadãos escolhidos por sorteio guiado por alguns princípios. Em seguida, um conjunto de constitucionalistas escreveu um documento-base com 700 páginas. Adiante, a proposta de constituição foi sendo construída por meses por um grupo de 25 cidadãos que utilizaram o sistema de decisão consensual. A internet entra nesse momento. O comitê definiu que tudo seria feito de modo transparente e democrático. Dessa forma, a constituição era disponibilizada pela internet com comentários e contribuições de toda a população. Depois, um referendo que contou com a participação de 67% da população definiu a carta como base da nova constituição do país.
J – Trata-se um país com 320.000 pessoas. Isso não representa nem 1% da população brasileira, por exemplo. A população da Islândia cabe nos limites da Avenida do Contorno, em Belo Horizonte.Contudo, apesar da escala, esse modelo foi tremendamente inovador e participativo. Se você comparar com qualquer outro processo onde há um poder constituinte originário não vai encontrar nada parecido.
K – Uma das 25 pessoas que participaram do processo foi a estudante de direito Katrin Oddsdottir. Em muitas das suas entrevistas, ela afirma que, num cenários de protestos, a maioria das pessoas sabe o que não quer. Todavia, a parte complicada é propor algo novo e construir, de acordo com ela. Isso, ela insiste, é o que muda uma nação. A maior parte das discussões visava evitar que o país presenciasse os mesmos problemas de novo. Uma nova forma de administração pública mais transparente e com maior garantias de independência entre os poderes foi o resultado.
L – A crença no poder da transparência está por trás da recente iniciativa que pretende dar a Islândia a legislação sobre informação mais moderna do mundo. O Partido Pirata propõe a criação do Instituto Internacional de Mídias Modernas. A proposta está barrada no parlamento sem apoio, mas isso pode mudar com a crescente popularidade dos piratas.
M – Para a raiva de muitos, apesar de toda a pressão popular pela aprovação da nova constituição, o Parlamento não deu seguimento ao processo. Enquanto professor de direito constitucional, é nesse tocante que não considero o processo como um poder constituinte originário completo. Em teoria, quando ele se inicia, há soberania e autonomia suficiente para aprovar uma nova ordem jurídica. Ele não se submete ao poder legislativo da ordem jurídica anterior. Todavia, na Islândia, o atual poder legislativo travou o processo. A nova constituição foi redigida, mas não passou a valer. A maioria dos habitantes, contudo, não se desanimou. Muita gente na capital acredita que a democracia direta é um experimento que andamento.
A democracia não corre, mas chega ao seu objetivo.
Johann Goethe
N – Vale conhecer uma iniciativa chamada Fundação dos Cidadãos (Citzens Foundation), criada pelo web-desenvolvedor Gunnar Grimsson e o empreendedor Robert Bjarnason. O site confere aos cidadãos mais capacidade de influenciar, além de conectar a sociedade aos seus representantes. Antes dessa iniciativa, a dupla criou o site Reykjavik Melhor (Better Reykjavik) para a eleição municipal de 2010 e enviou uma carta para os 10 partidos que existem no país onde havia um convite: “tentem a democracia digital”. O site permitia que as pessoas propusessem, votassem e comentassem sobre ideias para melhorar a cidade. O único partido que respondeu foi o Best Party, criado pelo comediante Jon Gnarr como forma de sátira. Na sua campanha, ele prometeu toalhas de graça nas piscinas e um urso polar para o zoológico da cidade. E há quem pense que apenas o Brasil possui palhaços na política. O partido não tinha uma agenda, prometeu não cumprir nada do que prometia, era obviamente divertido e foi crescendo nas pesquisas. Chegou um momento onde eles pareciam que iam ganhar… A coisa ficou séria e a plataforma digital serviu de verdade como plano de governo. Os piadistas venceram a eleição e formaram uma coalizão com os social-democratas. A ferramenta Reykjavik Melhor virou um instrumento de governo. Atualmente, as 10 melhores ideias são transformadas em ação de governo todo mês. Vai rindo… Abaixo, o video que mostra como a plataforma funciona.
O – Bjarnason e Grimsson dizem que 600 projetos do “Reykjavik Melhor” e seu projeto recente “Comunidades Melhores” (Better Neighbourhoods) [uma plataforma digital de orçamento participativo] foram aprovados. Isso inclui transformar a principal rua do comércio da cidade num espaço só para pedestres durante o verão (caminhei por lá e ficou muito bom), transformar uma velha fábrica num centro de juventude, mais abrigos para os moradores de rua e mais ciclovias. O projeto específico para vizinhanças trabalha com uma ideia muito simples: ninguém anda pelo próprio bairro sem imaginar soluções que poderiam melhorar a vida de todo mundo. A democracia digital e a participação cidadã pela rede são coisas que vieram para ficar.
P – Muitos acreditam que a oposição do poder legislativo atual à constituição decorre de interesses das indústrias pesqueiras (associadas à alguns políticos). As novas regras para a sustentabilidade causariam grandes impactos à forma como se dá a exploração dos recursos atualmente.
Q – Uma pesquisa realizada em março desse ano mostra que a confiança no Parlamento caiu de 24% para 18%. Os protestos recomeçaram… Uma sociedade em rede causa muito trabalho para os políticos. Algumas semanas atrás, milhares se reuniram no Dia da Independência. Essa é a democracia no seu estado gasoso…
R – O governo tenta manter os protestos sob controle com as forças policiais. A Islândia realmente é um lugar repleto de vulcões. O maior deles é social. O curioso é que, diferente dos protestos brasileiros, nada é depredado, nem nota-se qualquer violência, seja policial, seja cidadã. Ou seja, esse povo entende que o quebra-quebra não é condição fundamental para a mudança. Uma porção de gente junta é. (Eu me lembro de um rapaz quebrando os vidros do prédio onde vivo em 2013 e gritando comigo para afirmar que aquilo era a revolução. Não era e nunca será. O demente é filiado ao PSOL. E não pagou a janela danificada até hoje.)
S – As movimentações para aprovar a constituição são inúmeras. Ao caminhar pelas ruas da cidade, notei muitas bandeiras e placas a respeito. As pessoas querem mudar o sistema sem quebrar vidraças. Eu acredito nisso. E ninguém por aqui acha que isso será feito para consolidar algo. Em breve, devem querer mudar mais uma vez… A única coisa certa é a mudança. Os islandeses não confiam mais nos políticos e no sistema onde eles se encontram.
T – Poderíamos fazer algo assim no Brasil? Recentemente, assistimos o Congresso votar uma reforma política (que eu e muitos outros esperam). Foi uma tragédia. Pouco ou nada melhorou. Algumas coisas pioraram. O site Open Democracy mostra a lição da Islândia. Muitas pessoas defendem um poder originário constituinte que dê ao Brasil uma nova constituição. Eu não sei… Escrevo mais sobre isso depois. Todavia, parece-me muito claro que o sistema político e os políticos brasileiros não querem, nem vão, mudar as regras de um jogo que tem beneficiado muito pouco a sociedade.
U – O que vai ficando óbvio é que a sociedade está cada vez mais conectada. É fundamental diferenciar os processos. Lembro-me da Assembléia Popular Horizontal (ironicamente batizada de Comuna do Arrudas, por um amigo jornalista) que foi feita em Belo Horizonte em 2013. Os participantes da iniciativa invadiram a Câmara Municipal, deprederam o prédio e ainda resolveram criar uma lei própria para o caso de assédio sexual que se deu no acampamento. É gente que quer mudança, mas usa as ferramentas obsoletas de uma revolução em 1917. O personagem entrevistado pelos jornalistas é membro do PCR (Partido Comunista Revolucionário, que ainda não possui a legenda). Esse tipo parece querer mais democracia, mas sempre deságua em menos democracia. A violência nunca é caminho. A violência é a ferramenta dos totalitaristas. Repeti isso muitas vezes em 2013. E o resultado todos vimos: a torre social que estava sendo construída em 2013 implodiu pelos black blocks.
V – Quando os serviços públicos falham, a democracia fica em perigo. A Islândia soube lidar com a situação com participação e reformas. Acredito que os manifestantes não foram chamados de golpistas ou coxinhas. Eram tão somente cidadãos exercendo a cidadania. A saúde civil. As democracias representativas estão caducando diante dos novos desafios. Isso não quer dizer que a democracia é ruim, mas significa que ela precisa ser aperfeiçoada como sempre foi. O sistema que coloca os interesses de partidos acima dos interesses das pessoas precisa mudar. Ou mudam, ou são engolidos por uma massa de pessoas que querem mudança.
X – Será que se o povo não resolvesse bater panelas, o desemprego estaria em apenas 4% e o crescimento esperado do Produto Interno Bruto para 2015 previsto pelo FMI seria de 4,1%?
A democracia é um sistema que faz com que nunca tenhamos um governo melhor do que merecemos.
George Bernard Shaw
W – O curioso é que, enquanto a Islândia se recupera, do outro lado da Europa, a Grécia só afunda! A Islândia adiantou seus pagamentos e a Grécia os atrasou. Li uma entrevista do primeiro-ministro islandês Sigmundur David Gunnlaugsson onde ele afirma que os controles financeiros parecem ótimos no começo, mas nenhuma economia consegue permanecer sustentável assim. O que a Islândia ensina a Grécia? Vamos começar dizendo que tamanho não é documento, pelo menos no que diz respeito a países.
Y – A maioria dos moradores da Islândia conhece pessoalmente o primeiro-mineiro. A Grécia tem uma população trinta vezes maior e um produto interno produto dezesseis vezes maior do que a Islândia. O problema de ambos teve raízes diferentes. A Grécia gastou mais do que devia. A Islândia vivenciou a irresponsabilidade do sistema bancário. Os islandeses não utilizam o Euro (como Lady Thatcher havia sugerido) e, portanto, não ficou tão sujeita ao controle internacional. Essa pode ser uma saída para os gregos… No começo, vai ser um inferno. Pode haver luz no fim do túnel, no entanto. Na crise financeira de 2008, se a Europa e os Estados Unidos da América tiveram um porre de tanto beber em capital, a Islândia teve um coma alcoólico e ficou inconsciente. O krona islandês era a melhor bebida da festa. A glicose que o país injetou na sua corrente sanguínea compunha-se controle para evitar a saída de divisas com ajuda do FMI. Ao invés de cortar serviços sociais, o governo aumento impostos e foi habilidoso na adminstração dos títulos das dívidas. A Islândia também fez algo que falta a Grécia! Prendeu os corruptos! Ou seja, os gregos, ao invés de xingarem Angela Merkel, deveriam remover do poder os seus políticos ruins. A Islândia não ficou jogando a culpa na Alemanha. Há pontos positivos do controle de capital e desvalorização da moeda. As exportações ficam melhores e as importações ficam piores. Ainda, o turismo explode! Aprenda, Grécia! Eu irei aproveitar… Com uma indústria precisando gerar produtos e serviços, o desemprego não chega! 50% dos jovens gregos estão desempregados. A longo prazo, o capital perde mede e regressa…
Z – Se o turismo só aumenta na Islândia (100% de 2006 para 2014) desde a crise, imaginem o que pode acontecer à Grécia! Isso transformou a cidade. O centro era um lugar apenas para bancos. Hoje, há estabelecimentos aos montes para os turistas. Ainda, com moeda própria, a Islândia conseguiu reerguer a economia baseada na pesca e indústrias de energia. A Islândia tem realmente muito a ensinar a Grécia. E acho que tem muito a ensinar para o Brasil também.