Da modernização de BH ao ciclo inflacionário do Brasil
Quando se pensa em Juscelino Kubitschek, a imagem que costuma vir à mente é a de um presidente desenvolvimentista, capaz de construir Brasília, multiplicar rodovias e turbinar a indústria. Contudo, essa narrativa raramente menciona o preço fiscal desse projeto: a dívida externa brasileira cresceu mais de US$ 500 milhões entre 1956 e 1961, enquanto a inflação saltou de 21% para 43%. Juscelino rompeu com o Fundo Monetário Internacional em 1959 e seguiu seu Plano de Metas a despeito de alertas sobre descontrole orçamentário. A ordem era crescer, ainda que às custas do equilíbrio fiscal.
Curiosamente, o mesmo homem que inflacionou o Brasil com a utopia dos “50 anos em 5” havia sido, poucos anos antes, um prefeito que seguira a cartilha clássica da prudência orçamentária. O relatório oficial de sua administração em Belo Horizonte nos anos de 1940 e 1941 mostra um Juscelino técnico, metódico e zeloso com o dinheiro público. Ele tirou a prefeitura do déficit e a levou ao superávit. E o mais notável: enquanto realizava uma transformação urbana profunda.
Em 1940, o déficit da prefeitura era de 2.052:438$000 (dois milhões, cinquenta e dois mil e quatrocentos e trinta e oito mil-réis), valor elevado para uma cidade com cerca de 200 mil habitantes e arrecadação modesta. No ano seguinte, o resultado foi revertido: a prefeitura fechou 1941 com superávit de 1.391:507$000. O orçamento municipal passou de 21.108:000$000 para 26.299:945$600 – um crescimento de 25%. A receita própria foi fortalecida com revisão da planta cadastral, cobrança mais eficiente de tributos e expansão da base fiscal por meio da urbanização de novos bairros. Só em pavimentação, foram executados 154.825 m² em dois anos. Na área da saúde, os atendimentos saltaram de 154 mil para quase 178 mil. Foram construídos bairros populares, postos médicos, escolas, jardins e parques. Nada disso comprometeu as finanças.
A gestão renegociou dívidas com o Banco do Brasil e a Caixa Econômica, reorganizou a máquina pública e cortou desperdícios. A centralização de funções administrativas e a extinção de cargos redundantes reduziram despesas correntes. A coleta de lixo retirou 6,5 milhões de quilos de resíduos em 7.840 viagens no ano de 1941, tudo sistematizado em relatórios detalhados. A cidade foi arborizada com mais de 1.400 novas árvores e ganhou iluminação em 933 postes. Cada ação estava justificada em números, mapas, planilhas e índices comparativos com o ano anterior.
O caso mais emblemático foi a Pampulha. Em apenas dois anos, foram erguidos o cassino, a Casa do Baile, o Iate Clube, a barragem e a estação de tratamento de água. O reservatório acumulou 12 milhões de metros cúbicos de água, com profundidade de até 18 metros. Ao contrário de Brasília, que nasceu endividada, a Pampulha surgiu equilibrada. A operação financeira da prefeitura durante esse período mostra que houve priorização de obras com retorno urbano e patrimonial: o valor dos terrenos vizinhos aumentou, e a arrecadação o acompanhou.
É esse contraste que espanta. O mesmo líder que conduziu Belo Horizonte com rigor fiscal transformou-se, poucos anos depois, no presidente que liderou o maior ciclo inflacionário da República até então. Talvez seja o peso da escala nacional. Talvez o fascínio da grandeza. Ou talvez o prefeito tenha sido mais racional porque não podia contar com a elasticidade do Tesouro Nacional. Em Belo Horizonte, Juscelino tinha de fazer caber. Em Brasília, quis fazer caber o impossível.
De todo modo, o relatório de 1940-1941 é uma aula de administração pública. Entre as tabelas e gráficos, emerge um gestor consciente de suas limitações, mas ambicioso em suas soluções. Um prefeito que, com as ferramentas da contabilidade e o olhar de médico, reorganizou as contas da cidade enquanto a preparava para o século XX. É uma lembrança útil em tempos de populismo fiscal e promessas fáceis: antes de ser o presidente que levou o Brasil ao vermelho, Juscelino foi o prefeito que levou Belo Horizonte ao azul.