E a república não se acabou…

A revista Época publicou na última sexta-feira, 19 de junho de 2015, uma reportagem sobre a prisão dos presidentes das maiores empreiteiras do país. Emílio Odebrecht, pai Marcelo Odebrecht, encarcerado na 14ª fase da operação lava-jato, afirmou que, no dia em que isso acontecesse, ele iria derrubar a república. Sabendo que o brasileiro tem o bom hábito de não trabalhar aos finais de semana, imaginei que o fato se daria logo pela manhã dessa segunda-feira. Acordei, abri a janela e, ao que parece, nossa nação republicana permanece de pé. Esquentei o café e, na biblioteca onde escrevo, notei dois artefatos que guardo com carinho. A foto deles ilustra essa postagem.

Bebo-o porque é líquido, se fosse sólido comê-lo-ia.

A – Em 1960, Juscelino Kubitschek de Oliveira (PSD) se encontrava no último período do seu mandato de cinco anos. A reeleição não existia e a campanha eleitoral para sucedê-lo foi uma das eleições mais acirradas que o Brasil já viu. Pensem bem: de 1889 a 1930, não havia campanha de fato na República Velha. De 1930 a 1954, vigorou o governo de Getúlio Vargas em suas diversas formas (com uma pausa eleitoral que elegeu Eurico Gaspar Dutra). Em 1955, venceu JK. Notem, como num piscar de olhos, o Brasil deveria exercer seu direito de voto antes da ditadura retirar ele logo em seguida. Foi então, que esses dois alfinetes de campanha que estão guardados na minha biblioteca dividiram o Brasil. Um representa uma espada. Outro representa uma vassoura.

BO candidato de JK era o Marechal Henrique Baptista Duffles Teixeira Lott. Cinco anos antes, quando os militares quiseram impedir a posse do presidente bossa-nova, o marechal ficou conhecido por garantir a legalidade e dar posse ao eleito. Seu partido era o PSD, aliado ao PTB, tendo ainda na coligação o PST, o PSB e o PRT. O símbolo do candidato era a espada, um emblema para os militares dessa patente. Ele era mineiro, de Antônio Carlos, e nunca tinha participado de uma eleição antes… A estratégia de eleger um poste não é nova, portanto.

C – O principal candidato de oposição era Jânio da Silva Quadros… Quem nunca ouviu falar nessa figura folclórica da política nacional? Natural de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, mudou-se para o Paraná, onde estudou, e exerceu seu primeiro mandato eletivo em São Paulo, cidade em que se bacharelou advogado. Era professor de direito e dispunha de uma oratória brilhante! Seus alunos tanto insistiram que ele se candidatou e se tornou vereador com trinta anos de idade. Não terminou o mandato na Câmara Municipal e saltou para deputado estadual. Não terminou o mandato na Assembléia Legislativa e virou Prefeito de São Paulo. Na campanha pela prefeitura, venceu o candidato apoiado pelo governador e pelo presidente com o lema do “tostão contra o milhão”.Não satisfeito em abandonar dois cargos, repetiu o movimento pela terceira vez e se elegeu governador de São Paulo. Ele faria o mesmo uma quarta vez para se candidatar a presidente em 1955, mas preferiu esperar 1960. O símbolo do candidato era a vassoura, com a qual iria varrer a corrupção do Brasil. O partido de Jânio Quadros era o nanico PTN, apoiado pelo PDC, pelo PR, pelo PL e pela UDN, a grande legenda de oposição a JK.

D – Além dos dois principais concorrentes, existia ainda Ademar Pereira de Barros. Quem não conhece, quem nunca ouviu falar, na caixinha do Ademar? Outra frase marcante? Ele rouba, mas faz!Tem gente que atribui a frase a Newton Cardoso, mas foi dita na realidade para definir o político paulista cuja fama o precedia. Um corrupto de marca maior! Em 1939, durante o Estado Novo, Getúlio Vargas nomeou Ademar de Barros interventor no Governo do Estado de São Paulo. Quem acha Paulo Maluf um grande construtor de obras, desconhece o ritmo de construção de Ademar de Barros. Claro, parte dos recursos das obras iam para a famosa “caixinha” que muitos juram ter visto ao vivo. O símbolo do candidato era um trevo de quatro folhas. Esse alfinete minha família não guardou. Pelo visto, ninguém votava nele entre meus antepassados. Celebro o fato. O partido de Ademar de Barros era o PSP e nenhum mais na coligação.

E – O primeiro destaque que faço na eleição são os jingles de campanha! Você pode encontrar todos aqui nesse link para o Youtube.

F – Varre, varre, vassourinha! Varre, varre a bandalheira! Ao escutar o jingle de Jânio Quadros, qualquer eleitor já encontrava uma ideia síntese e um símbolo poderoso. Para entender o Brasil é fundamental compreender que todo o discurso político (por mais complexo que seja) precisa se adaptar a conceitos simples.

Jânio Quadros em campanha eleitoral na cidade livre em Brasília. Arquivo do Jornal O Globo, 1º de setembro de 1960

G – Enquanto Jânio Quadros jogava farelo nos ombros para simular caspa e ficar mais próximo do povo, o candidato de JK não ia na mesma direção. Um dos jingles de Jânio feito por Luiz Gonzaga dizia que “depois de JK, só pode ser JQ” e que “a vassoura é o fuzil e o voto é a munição”. Já o marechal Lott insistia num jingle que mais lembrava um dobrado militar com voz pomposa para marcar passo. E, pasmem, os marqueteiros de Ademar preferiram admitir a caixinha da corrupção colocando-a nas peças de campanha!

Quem não conhece? Quem não ouviu falar? Na famosa “caixinha do Ademar”, Que deu livro, deu remédio, deu estrada, Caixinha abençoada! Deixa falar toda essa gente maldizente, Deixa quem quiser falar… Enquanto eles engordam tubarões, A caixinha defende o bem-estar de milhões!

 

H – Um fato muito importante! Naquela época, você não votava ao mesmo tempo para presidente e vice-presidente. Existiam dois votos. Primeiro, o eleitor escolhia o presidente na cédula e, em segundo, marcava o voto no vice-presidente. Isso parece incompreensível.

I – Minas Gerais e São Paulo mantiveram a histórica aliança. “Jânio foi o melhor governador paulista. Milton foi o melhor governador mineiro. Dois grandes homens públicos para um grande governo brasileiro. No dia três, eleja os dois de uma vez!” – anunciava o locutor. O candidato a vice-presidente na chapa de Jânio Quadros, era Milton Campos, governador do Estado de Minas Gerais, pela UDN, apoiado por PR, PL e PTN.

J – João Goulart, ou Jango, como era conhecido, era o candidato a vice-presidente na chapa de Teixeira Lott. Candidato do PTB, era apoiado por PSD, PST, PSB e PRT. Um gaúcho que fez carreira colado a Getúlio Vargas

K – Uma das novidades daquela eleição foi o uso da televisão. Um ano antes do pleito, Jânio Quadros pilotou um programa de TV onde comentava os problemas do país na Record. E, pela primeira vez, foi ao ar um comercial eleitoral. O tema? Inflação!

L – Para quem acha que os movimentos “Lulécio” e “Dilmasia” foram grandes invenções (Em 2006, em Minas Gerais, pregava-se o voto em Aécio Neves, do PSDB, para governador, e em Lula da Silva,  do PT, para presidente. O mesmo movimento somando antagônicos se repetiu em 2010 com a eleição de Antonio Anastasia, do PSDB, para o governo, e Dilma Roussef, do PT, para a presidência) vale recordar o movimento Jan-Jan!

O povo quer Jan-Jan! Pra quê discutir com o povo? O povo quer, o povo é fã da dobradinha Jan-Jan! Espalhe a senha da vitória para o Brasil! Jan-Jan, Jan-Jan!

 

M – A campanha eleitoral não se dava numa ilha isolada. O Brasil vivia os dias de 1960 e o mundo tinha um contexto. John Fitzgerard Kennedy era eleito presidente dos Estados Unidos da América. Nikita Krutchev comandava a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. O planeta ardia em uma guerra fria. A revolução cubana mal havia acontecido e o comunismo era pretexto para todo tipo de discurso no Brasil. Antônio de Oliveira Salazar, em Portugal, e Francisco Franco, na Espanha, comandavam ditaduras. Na África, as colônias começavam a se libertar das metrópoles e cair nas mãos de tiranos que, em alguns casos, governam até dias atuais. A Coréia pegava fogo e se divida entre norte e sul. Em síntese, havia o dito “primeiro mundo” capitalista, o “segundo mundo” socialista” e o “terceiro mundo” onde nos encontrávamos a decidir pelos dois anteriores ou por uma imparcialidade.

N – A situação econômica no Brasil vivia uma grande crise. O fim do governo JK foi marcado por uma escalada na inflação e por uma crescente migração do campo para as cidades. Os desafios eram imensos. Muita gente dizia que a república ia acabar…

0 – Alguns raciocínios interessantes sobre a disputa merecem ser destacados. Os partidos, antes como agora, eram questões secundárias na política brasileira. Ninguém ligava para a sopa de letrinhas que existia na década de sessenta, como não ligam para isso hoje em dia. Todos eram moscas buscando rodear o doce mais açucarado ou o candidato com mais chances. Valia um personalismo desmedido e isso dava a Jânio chances muito maiores. Sua personalidade era forte, sua vocação para liderar era presente e ele desenvolveu toda a campanha se baseando no apoio popular que lhe era dado individualmente.

P – Cuba pautou a eleição de 2014 e pautou a eleição de 1960! Isso parece inacreditável, mas é fato. Fidel Castro entrou no jogo e convidou Jânio Quadros e Teixeira Lott para visitar Havana.Ademar de Barros não recebeu a atenção do ditador caribenho já que ele tinha na sua base de apoio os integralistas que ainda restavam no Brasil. Vejam que situação curiosa! Lott negou o convite de imediato, muito embora seu vice, Jango, era ligado aos movimentos trabalhistas e tinha no ideário muitas interseções com o regime socialista cubano. E Jânio, um político conservador, apoiado por uma coligação conservadora, incluída a UDN, aceitou de bom grado e foi desembarcar na ilha cubana! A opinião pública, em sua maioria, curtiu a viagem!

 

Q – Depois de muito pão com mortadela e discursos, chegou a hora de abrir as urnas:

• Jânio Quadros – 5.636.623 votos – 48,27%
• Henrique Teixeira Lott – 3.846.825 votos – 32,93%
• Adhemar de Barros – 2.195.709 votos – 19,56%

 

R – E para vice-presidente, o resultado foi o seguinte:

• João Goulart – 4.547.010 votos – 36,1%
• Milton Campos – 4.237.719 votos – 33,7%
• Fernando Ferrari – 2.137.382 votos – 17%

 

S – Vale a pena ler o editorial do jornal O Globo declarando voto e Jânio e analisando a eleição após o resultado: “A plataforma do candidato: combate à inflação, moralidade administrativa, saneamento das finanças públicas, luta contra a corrupção. São propostas pelas quais O GLOBO se bate na sua história.”

T – Deu Jan-Jan! O povo brasileiro resolveu escolher o presidente de uma chapa e o vice-presidente da outra. Dos dois alfinetes que tenho na minha biblioteca, a vassoura levou a melhor em relação a espada. As principais forças do vencedor eram a eficiência administrativa, a independência de partidos e a eloquência das suas ideias. O resto da história, todo mundo conhece… Jânio renunciou depois de eleito alegando forças ocultas, Jango assumiu a presidência e os militares o depuseram instaurando uma ditadura que durou de 1964 até 1985.

U – O que poderia ter sido diferente? A república não acabou, mas sofreu bastante. Notem que não havia segundo turno nas eleições. Houvesse, pergunto, para onde iriam os eleitores de Ademar de Barros? Quem ele apoiaria? Há de se supor que o apoio iria para quem melhor engordasse sua caixinha.

V – Em quem você votaria? Eu tenho uma posição. Sempre! Em Minas Gerais, dizem, há duas raízes políticas que fazem florescer um político. Ou ele é udenista, ou ele é pessedista. Quem ensinou-me isso foi Ziraldo. Quando um político tem o estilo do PSD, a política para ele é um prazer e uma alegria. Quando um político considera a política aquela coisa pesada e carregada, quase um fardo, não há dívidas de que ele descende da UDN. Eu fico com o PSD de Juscelino Kubitschek e Tancredo Neves. Por esse primeiro motivo, eu colocaria um X na cédula marcando Lott para presidente e Jango para vice-presidente. Por um segundo motivo, daria um voto de confiança no candidato de JK. Quem sabe, se o marechal tivesse sido eleito, não haveria renúncia, seu mandato seria cumprido e Juscelino retornaria a presidência em 1965…

X – Naquela mesmo ano, ocorreram eleições para governador. A UDN não apenas venceu a disputa presidencial, como também levou o governo em dois grandes colégios eleitorais: Minas Gerais e Guanabara (antigo Distrito Federal que abrangia a cidade do Rio de Janeiro e permaneceu temporariamente unidade federativa com a transferência da capital para Brasília). Carlos Lacerda (UDN) derrotou Sérgio Magalhães (PTB) na Guanabara, e Magalhães Pinto (UDN) derrotou Tancredo Neves (PSD) em Minas Gerais. Ambos eleitos foram os dois governadores que mais fortemente apoiaram o golpe militar de 1964. Sem eles, os militares não teriam conseguido depor Jango. Em quem eu votaria para governador? Não preciso nem dizer que meu voto seria do Tancredo… E, se ele tivesse ganho, a história talvez teria sido muito diferente… Insisto, a república não cai, mas balança de um jeito que impressiona.

W – Hoje em dia, não se usa mais alfinetes nas campanhas eleitorais. A legislação considera o artefato um brinde e o candidato pode ser enquadrado em crime eleitoral se atrever-se a realizar uma confecção vintage distribuindo versões modernas do tipo. Trocaram os alfinetes por aqueles adesivos circulares mais baratos e nem tão charmosos conhecidos popularmente como praguinhas.

Y – Muita gente que vem na minha biblioteca fica perdida entre tanta coisa, que sequer nota essas duas peças metálicas de menos de cinco centímetros dispostas entre as páginas de um livro. Quanta coisa elas representam, certo? Gosto de mantê-las por perto para lembrar que muito na política brasileira se mantém. É, portanto, fundamental compreender o passado, para o presente fazer mais sentido e, quem sabe, aprimorarmos nosso futuro.

Z – Lamento, Emílio, a república não vai cair. Não podemos dizer que ela está de pé… Fato. Todavia, varrendo um pouquinho ali, esfregando um pouco acolá, submetendo algumas empresas e políticos à um verdadeiro lava-jato, a gente vai erguendo essa nação.

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