O barquinho da Pampulha

Patrimônio precisa de política pública mais consistente

Anunciar barcos na Pampulha soa como ato de marketing. Fotografia bonita, manchete garantida, promessa de modernidade. Difícil é sustentar o sorriso quando se olha para o conjunto inteiro.

O Museu de Arte da Pampulha, coração cultural do projeto de Niemeyer, está fechado desde 2019. Infiltrações, instalações precárias e um projeto de restauro que se arrasta há seis anos. A Casa MAP, anexo construído para receber o acervo durante as obras, só agora começa a ficar pronta. A licitação da reforma está prometida para 2025, com custo de R$ 35 milhões. Reabertura prevista para 2028. Até lá, o antigo cassino segue vazio, interditado, sem vida.

A Praça Alberto Dalva Simão, projetada por Burle Marx, é caso de penúria urbana. Espelho d’água convertido em lama, pérgola pichada, lixo acumulado, árvores derrubadas para lenha. Virou abrigo improvisado, não praça de convivência. Desde 2006 há diagnósticos de abandono. Os recursos que finalmente entraram no orçamento para sua revitalização não foram iniciativa da prefeitura. Foram fruto de emendas parlamentares que destinei como vereador. Sem essa intervenção, o Executivo teria mantido a praça esquecida.

O Iate Tênis Clube sustenta o vexame maior. O anexo construído nos anos 1970 aterrou área da lagoa e bloqueou a vista para a Igreja da Pampulha. Foi classificado pela Unesco como ameaça ao título de Patrimônio Mundial. O compromisso brasileiro era demolir tudo. Quase dez anos depois, discute-se se cai apenas o segundo pavimento.O clube pede compensações, a prefeitura empurra processos, o Ministério Público concilia. Enquanto isso, o puxadinho segue de pé, prova de que interesses privados prevalecem sobre o patrimônio coletivo.

A Casa do Baile funciona, está restaurada, abriga exposições. O problema é outro: a escala diminuta e a programação tímida tornam o espaço subutilizado. Poderia ser polo de design e arquitetura, converte-se em agenda esparsa, quase invisível na vida cultural da cidade.

A Igrejinha de Niemeyer resiste como cartão-postal, com painéis de Portinari e jardins de Burle Marx parcialmente recompostos. Mas o roseiral desapareceu, a lanchonete de apoio está abandonada, o entorno sofre com ambulantes desordenados, calçadas estreitas, travessias perigosas e sujeira. O templo reconhecido mundialmente convive com descuido municipal básico.

A Casa Kubitschek, feliz exceção, foi restaurada em 2013 e tem programação constante. Piqueniques, oficinas e exposições mantêm o espaço vivo. O problema não é a casa em si, mas sua desconexão com os demais equipamentos. Não há calçadão contínuo, transporte integrado nem programação coordenada. O visitante salta de ilha em ilha cultural, sem circuito que unifique a experiência.

E há a lagoa. Basta caminhar por trechos de sua orla para sentir o cheiro: não é aroma de parque, é odor de esgoto. Em determinados pontos, a água exala fedor que espanta até o passante. Lixo flutuando, aguapés acumulados, espuma branca junto à margem. Como propor navegação em águas que não permitem nem uma caminhada prazerosa à beira? É preciso coragem para convidar turistas a embarcar onde o próprio morador evita parar para respirar.

Eis o retrato: museu fechado, praça abandonada, anexo irregular, igreja cercada por improvisos, casa com programação tímida, outra isolada. Em volta, lagoa fétida, calçadas esburacadas, acessibilidade precária. A Pampulha, declarada Patrimônio Mundial, permanece um colar de joias mal engastadas.

Nesse cenário, governo estadual e prefeitura anunciam passeios de barco gratuitos. O barquinho é simpático, rende cliques e pode até divertir turistas por três meses. Só não mascara a gravidade do quadro. O conjunto modernista pede estratégia de governança, obras estruturais, zeladoria cotidiana e coragem política para enfrentar interesses enraizados. Sem isso, o passeio será circular, como o barco: gira em torno da lagoa, retorna ao ponto de partida, não leva a lugar algum.

Álvaro Damião e Mateus Simões conhecem a cidade, foram meus colegas vereadores. Podem escolher se querem ser lembrados como gestores que colocaram um barco na água ou como líderes que tiveram a ousadia de devolver a Pampulha inteira à altura de seu título mundial. O primeiro gesto é manchete. O segundo é história.

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Gabriel de a a z

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