O que o maior retrofit do mundo ensina ao Brasil

SoMA entregará 330 residências com aluguel controlado

Uma transformação silenciosa, porém colossal, está em curso na cidade que nunca dorme. No coração do distrito financeiro de Manhattan, o antigo edifício de escritórios localizado no número 25 da Water Street – agora rebatizado como SoMA (South Manhattan) – está se tornando o maior prédio residencial do mundo, criado a partir de uma conversão de escritórios. São 1.320 apartamentos no lugar onde antes funcionaram as sedes do JPMorgan Chase, do National Enquirer e do New York Daily News. E mais do que uma façanha arquitetônica, o projeto é um marco de política pública inteligente.

Desde a pandemia de Covid-19, grandes centros urbanos passaram a enfrentar uma equação complexa: torres comerciais vazias, de um lado, e déficit habitacional crescente, de outro. Nova York reagiu com pragmatismo. Em 2024, o Estado aprovou a Seção 467-m, que oferece isenções de IPTU por até 35 anos para prédios comerciais que forem convertidos em habitação, desde que 25% das unidades sejam destinadas a famílias de baixa ou média renda. Essa política viabilizou financeiramente o SoMA, criando um modelo de equilíbrio entre o interesse privado e o bem público.

O município também fez a sua parte. Por meio do plano “City of Yes for Housing Opportunity”, Nova York reformulou suas regras de zoneamento, permitindo a conversão de prédios comerciais construídos até 1990 em residenciais. Lançou ainda o “Office Conversion Accelerator”, um programa para agilizar aprovações de grandes retrofits. O SoMA foi o primeiro a se beneficiar dessas mudanças e não será o último: mais de 80 projetos semelhantes estão em tramitação, o que mostra o compromisso da cidade com uma urbanização mais eficiente, compacta e inclusiva.

Ousadia e Contrapartidas

O retrofit foi ousado: além da reforma completa dos interiores, a fachada opaca do antigo prédio corporativo foi substituída por amplos panos de vidro. Foram escavados poços de luz, realocadas escadas e elevadores, e construídos dez andares adicionais sobre a estrutura existente, sem alterar suas fundações originais. A engenharia buscou preservar o edifício e, ao mesmo tempo, transformá-lo num espaço habitável de alta qualidade, com piscinas, quadras esportivas, biblioteca, cinema, spa e uma academia de 1.670 m². Tudo isso, mantendo a obrigação de entregar 330 apartamentos com aluguel controlado, fruto da contrapartida exigida pela política estadual.

O impacto já é sentido. Desde 1990, a população do distrito financeiro quintuplicou, passando de 13 mil para mais de 66 mil moradores, em grande parte graças a iniciativas de conversão como essa. O novo perfil residencial revitaliza o comércio de rua, atrai serviços, aumenta a segurança e impulsiona a arrecadação municipal. É a cidade voltando a ser vivida – inclusive à noite e nos fins de semana.

Lições para o Brasil

Esse movimento traz lições valiosas para o Brasil. Em cidades como Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro, o número de edifícios comerciais ociosos cresce ano a ano, enquanto milhares de pessoas vivem longe de suas oportunidades de trabalho e estudo. O SoMA prova que o reúso adaptativo pode ser uma saída sofisticada e eficiente, desde que haja ação pública coordenada. Legislação moderna, incentivos fiscais com contrapartidas sociais e vontade política são elementos indispensáveis.

A maior conversão de escritórios em moradia do mundo nos ensina que revitalizar centros urbanos exige mais do que boa arquitetura: exige visão. Enquanto isso, o antigo prédio do Othon Palace, no centro da capital mineira, possui investidores lutando contra a burocracia, sem nenhum incentivo fiscal ou tributário para fazer no edifício algo similar. Um exemplo do nosso atraso, assim como outros inúmeros prédios esvaziados na área central. Morar no centro não pode ser privilégio – tem de ser política pública. E quando o poder público abre caminho, o setor privado descobre que o futuro pode estar exatamente onde o passado parou.

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Gabriel de a a z

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