O papel do cidadão na cultura do cancelamento
Iniciei meu primeiro mandato de vereador em 2017 e, em vez de seis anos, parece que se passaram décadas desde então… Naquele ano, era possível acompanhar minha vida inteira pelo Instagram e pelo Twitter, agora apenas X.
Acordava antes dos sinos da igreja de São José e registrava-os nos Stories. O cotidiano seguia na velocidade com que eu pedalava. Quando em festas, perguntavam se eu não dormia. E, em momentos mais tranquilos, quando estava no apartamento, não faltava uma postagem com a abertura de “House of Cards”, a série da Netflix. Curtia cada episódio. Não vivenciava o primeiro contato com a vida pública, mas tinha me eleito pela primeira vez. E também entrei na onda de fazer comparações entre o sucesso online e a conturbada vida política brasileira.
Em outubro de 2017, uma acusação de abuso sexual retirou Kevin Spacey do papel de Frank Underwood. A Netflix matou o personagem principal e seguiu com a série em uma última temporada liderada por Claire Underwood. Contudo, nem todo o talento de Robin Wright salvou a série. A temporada final foi muito chata. Não mais mencionei a série nas minhas então movimentadas mídias sociais. Eu havia cancelado Kevin Spacey.
Pouco antes, em maio de 2017, o perfil oficial da série “House of Cards” no Twitter publicou: “Tá difícil competir”. Era uma referência às revelações do “Joesley Day”. Com a sua delação, Joesley Batista livrou a própria pele em troca de entregar grandes nomes da política brasileira. Um deles era alguém que eu conhecia desde 2005, quando me filiei ao PSDB: Aécio Neves.
Em maio de 2013, deixei a legenda após oito anos. Todavia, em 2014, mesmo sem partido, Aécio Neves foi o meu candidato a presidente. Meu e o de 51.041.154 pessoas, o equivalente a 48,36%. Estava ao lado dele no púlpito em que ele discursou após a derrota.
Quando tudo aconteceu naquele 2017, fui um dos que seguiram no fluxo do cancelamento de Aécio Neves.
Justifico minhas atitudes públicas: em nenhum momento eu gostaria de passar a impressão de que defendo o abuso sexual ou que sou a favor de buscar milhões em propina na Friboi.
Logo, se era disso que eles eram acusados, eu era contra. Problema deles, e não meu, pensamos muitos. Ler a íntegra dos processos? Confesso que não li nenhum deles. Podem confessar que muitos de vocês também não leram. Apenas declarei as minhas virtudes e segui em frente. A internet amplifica nossa necessidade de posar posturas.
Chegamos a julho de 2023. Parece que alguém leu os processos. Um júri inglês deu a sentença definitiva a Kevin Spacey: inocente. Ele já havia obtido vitórias também nos Estados Unidos da América. Poucos dias depois, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em São Paulo, confirmou a absolvição de Aécio Neves, em sequência a uma decisão anterior em primeira instância que também tinha absolvido o atual deputado federal. Essas notícias geraram centenas de comentários sobre a responsabilidade da acusação, da Justiça e da mídia. Eme fizeram refletir sobre o meu comportamento nesse caso.
Ninguém vai devolver a Kevin Spacey (e aos fãs) a sexta temporada de “House of Cards”. O ator foi eliminado do cenário cultural, e um filme foi reeditado para excluí-lo. Estava no auge de sua carreira brilhante.
Quando foi atingido pelas acusações agora negadas pela Justiça, Aécio Neves liderava as pesquisas presidenciais para o ano seguinte – mesmo contra Lula. O que se viu em seguida foi o dilaceramento do centro político.
Em Minas Gerais, o governo eleito e reeleito de Aécio Neves conseguiu ser mal avaliado retroativamente: as pessoas que falavam mal, muito tempo depois, eram as mesmas que tinham dado 92% de aprovação para a gestão do neto de Tancredo Neves, um homem que não entrava num restaurante em Belo Horizonte sem que o aplaudissem de pé.
Foram seis anos de calvários que não posso imaginar entre as acusações e as absolvições. No meu caso, não vou dizer que estava errado em discordar daquilo que acusavam os dois exemplos que cito neste artigo.
Continuo sendo contra crimes contra a dignidade sexual. Continuo sendo contra receber malas de propina. Estou refletindo, porém, que também é importante conferir se o acusado realmente fez aquilo a que eu sou contrário. Repensar nosso papel cidadão na cultura do cancelamento instalada. E, quando possível, fazer o desagravo merecido. Kevin Spacey merece estrear um roteiro grandioso.
E que Aécio Neves, um político habilidoso, a quem sou muito grato, sobretudo como mineiro, encontre também nessas palavras motivações para seus próximos passos. Para descansar, temos a eternidade.