O país precisa decidir se quer manter o sistema que subsidia o engarrafamento ou financiar o movimento
Nada é de graça. Nenhum serviço público nasce do nada. A diferença está em como a sociedade decide pagar pelo que considera essencial. Ninguém deposita moedas para o caminhão de lixo passar. Ninguém insere um cartão para acender a iluminação pública. Ninguém paga para ficar na sombra de uma árvore em uma praça. Esses serviços e bens urbanos têm custo, mas são sustentados coletivamente, porque compreendemos que sem eles a cidade não funciona.
O transporte continua sendo cobrado no ato do uso, como se fosse um luxo individual. Esta é a distorção central da vida urbana brasileira: tratar o deslocamento como despesa e o congestionamento como direito. O resultado é visível. O Brasil financia o automóvel e cobra o ônibus. Mantém a cidade cara, parada e poluída.
O engenheiro Lúcio Gregori propôs, nos anos 1990, um fundo público que transferisse o custo do transporte coletivo para uma contribuição sobre automóveis. Quem desgasta o asfalto paga pelo direito de circular; quem anda de ônibus viaja de graça. A então prefeita Luiza Erundina levou essa ideia à Constituição e inscreveu o transporte entre os direitos sociais. O raciocínio é o mesmo que vale para o saneamento, a coleta de lixo e as áreas verdes: o imposto coletivo substitui o pedágio individual.
A tarifa zero é uma reforma tributária urbana. Corrige a injustiça de um modelo que socializa os custos do carro e privatiza o preço do ônibus. Contribuímos para o coletivo porque há bens que não podem depender da renda individual. O transporte está entre eles.
Esse debate precisa ser feito com seriedade e responsabilidade. Responsabilidade fiscal é uma das marcas da minha vida pública. Devolvi recursos, cortei excessos e mostrei que é possível inovar sem romper o equilíbrio financeiro.
Em Belo Horizonte, há cinco modalidades de tarifa zero: para estudantes, mulheres vítimas de violência, moradores de vilas e favelas, pessoas em busca de emprego e cidadãos em tratamento de saúde pelo SUS. Todas foram criadas com planejamento e equilíbrio de contas. A gratuidade não quebrou o caixa. Ampliou o acesso e mostrou que é possível fazer mais com o que se tem quando há prioridade. Ainda assim, falta compromisso da atual gestão com o que já está pronto. Passados mais de 450 dias desde a aprovação da lei, as gratuidades para pessoas em tratamento de saúde e famílias do CadÚnico aguardam regulamentação.
Tarifa zero não é sinônimo de descontrole. De nada adianta o passe gratuito se o serviço for precário. A gratuidade precisa vir acompanhada de fiscalização e transparência. É dever do poder público garantir que as empresas não sucateiem os ônibus, reduzindo frotas e degradando o serviço. A tarifa zero deve caminhar junto com a qualidade de tolerância zero à ineficiência. Como defendo na minha dissertação de mestrado na London School of Economics, não basta oferecer transporte gratuito se ele não for confiável, seguro e eficiente.
O debate não é sobre quanto custa transportar mais gente, e sim sobre o que se faz com o Orçamento público. O Brasil gasta mais de R$ 50 bilhões por ano em incentivos à indústria automobilística e subsídios ao combustível fóssil. Mantém as ruas gratuitas para os carros e tarifadas para as pessoas. Financia o imobilismo e chama de “inviável” o investimento que faz a cidade se mover.
O país precisa decidir se quer manter o sistema que subsidia o engarrafamento ou financiar o movimento. O governo federal precisa entrar de forma estruturante nessa pauta. Brasília precisa lembrar que o Brasil é feito de cidades, onde o trânsito consome horas de vida e produtividade. É hora de criar um modelo nacional de financiamento da mobilidade com mais recursos para o transporte coletivo.
Tarifa zero é o nome de uma escolha coletiva. É o reconhecimento de que mobilidade não é privilégio, é condição de cidadania. O preço do movimento não se mede em planilha, mas em visão de futuro. Cabe ao poder público decidir se continuará subsidiando o trânsito que paralisa ou financiará o direito que liberta.