Não deu tempo de ligar pra Freusa

A genialidade da arquiteta mineira Freusa Zechmeister

Num jantar noite dessas, uma convidada ao meu lado disse que havia perdido a fé na política. Respondi: “Amém.” Não depositem vossas fés na política. Seria como buscar uma urna numa igreja para depositar o voto. A política e a religião são aspectos muito distintos da civilização. Somos seres políticos por sermos corruptíveis e imperfeitos. Diante da vida em sociedade, elaboramos a lógica de nos governarmos por vezes autocraticamente e por vezes democraticamente.

Para atenuar as imperfeições, escolho como cenário do meu café da manhã a Casa Bonomi… dia sim, dia também. Nessa catedral da panificação, convido-lhes a depositar fé. Naquela esquina com ângulo em quarenta e cinco graus onde se encontram a avenida Afonso Pena e a rua Cláudio Manoel, o pão é sagrado. Aquela padaria é perfeita.

Converter uma pequena edificação residencial de 1925 com estilo eclético num estabelecimento comercial é um desafio para qualquer arquiteto. O espaço era usado de depósito e o piso tinha madeiras em decomposição. Além das infiltrações diversas, janelas e portas estavam cobertas com tijolos. Vemos cenas assim por toda a cidade. 

Tudo estava por desabar, pois vale lembrar que sob o asfalto ainda flui um Córrego Acaba Mundo a comprometer fundações antigas. Além de resgatar a originalidade, o projeto de restauro permitiu o uso do local por uma panificadora em perfeito diálogo com um tempo que se passa devagar em qualquer fazenda do interior de Minas Gerais no século XIX. 

Em 1995, o projeto passou a ser realidade e segue lá como exemplo do que Belo Horizonte merece três décadas depois. Por trás da genialidade, o talento de arquiteta mineira Freusa Zechmeister, falecida dias atrás.

Para tornar a iluminação amena, quem vai a essa padaria percebe que as luzes claras que existiam nos anos noventa foram disfarçadas com uma fina malha acima da mesa comunal com quatorze lugares, um palco onde se reparte o pão. Mais do que um talento arquitetônico, esse foi um engenho da mulher que por anos foi figurinista da companhia de balé contemporâneo Grupo Corpo.

A obra de Freusa Zechmeister é constituída de um conjunto enorme de feitos. Para além de edificações, seu traço emoldurou os corpos que me fascinam no Grupo Corpo. Considero fantástico vê-la no altar da principal avenida da cidade onde desfilam ecletismo, Art Deco, Art Nouveau, Proto-modernismo, Modernismo e Arquitetura Contemporânea.

Não sou saudosista, mas admito saudades. E a sinto por estabelecimentos que Belo Horizonte viu: Café Ideal, Cafezinho, Splendido e A Favorita. Além de um trio de uruguaios que ensinou Belo Horizonte a comer e beber bem melhor (Motta, Rata e Tomás), todos estabelecimentos acima tinham outra coisa em comum: o traço dela.

A escadaria do Café Ideal era a conjunção do passado e do futuro, que entravam em cena sob a direção de Freuza, uma mulher que dominava a linguagem arquitetônica provocando choques teatrais. Meu bar também tem uma cortina de veludo vermelho, pois quem vai beber e comer fora quer mais do que uma refeição e merece um espetáculo.

Insisto em registrar e valorizar as personagens e os lugares da nossa cidade, de outras cidades, pois precisamos refletir sobre o que tem sido a era urbana em que vivemos. Uma cidade que se constitui apenas de lugares para dormir e lugares para trabalhar com um trânsito maldito entre um e outro é um pouco de inferno antecipado para um conjunto de cidadãos que peca ao ignorar que cidades são feitas de pessoas.

Num desses cafés longos na companhia do arquiteto Flávio Carsalade, na Casa Bonomi, onde falávamos de um projeto para a cidade, além de outras coisas mais, percebi que eu não conhecia a Freusa a ponto de ter conversado com ela. Como estou realmente motivado a abrir mais estabelecimentos que forneçam experiências, não só decidi que deveria promover esse encontro, como ousei sonhar em contratá-la. Não deu tempo de ligar. Vou ter de me contentar com a presença dela na minha padaria, a favorita.

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Gabriel de a a z

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