O ar do Carnaval liberta

Convivência no espaço urbano e a herança de Lübeck

A vida presta, diria Fernanda Torres, e merece celebração, acrescento eu. Aliás, para celebrar, basta estar vivo. “Totentanz”, em alemão, significa “dança da morte”, uma alegoria dos últimos anos da Idade Média para lembrar-nos que todos temos um encontro marcado com o fim da vida independentemente de quem somos. Muitos artistas representaram a dança da morte, como o fez Bernt Notke, na igreja Marienkirche, na cidade de Lübeck (hoje parte da Alemanha), em 1463, destruída por um bombardeio da Real Força Aérea britânica, em 1942.

Lübeck, cidade fundada em 1143, representou o florescimento urbano europeu, que se intensificou no século XIII. “Stadtluft macht frei” é uma expressão desse período da humanidade e pode traduzir-se em “o ar da cidade liberta”. Foi nesse ambiente com mais liberdade do que nos feudos que, em 1356, surgiu a Liga Hanseática, uma aliança entre cidades mercantis dos mares Báltico e do Norte, que durou até a data que marca o surgimento do Estado-nação, a Paz de Westfalia, em 1648. A vida urbana passaria a ser atrelada a porções territoriais nacionais.

A dança da morte também lembrava que viver em cidades era (e é) uma atividade que pode ser mais perigosa do que viver fora delas… tendo a morte, inclusive, como companhia mais constante. Assim, convinha aproveitar. Em Lübeck, existiam Carnavais famosos. Eram dias de inversões de papéis e subversões de comportamentos. Pelas ruas, alegorias imorais e obscenas com gente bebendo e dançando na cidade com ritmo e percussão.

Na Alemanha, existe “karneval” há séculos. Em algumas cidades alemãs, o costume vem desde as Saturnálias, festas do tempo imperial romano. No século IV, essas celebrações em homenagem à abundância, que aconteciam em dezembro, foram transferidas pela Igreja Católica para o período que antecede em 40 dias a Semana Santa.

Lübeck completará 882 anos em 2025. Belo Horizonte, 128 anos. E não tenho receio nenhum ao afirmar que podemos não ter evoluído tanto na arte de fabricar marzipã, iguaria da qual Lübeck sente tanto orgulho de produzir, mas nossa cidade fez evoluir muito mais e em muito menos tempo um delicioso Carnaval, celebração iniciada a partir de uma criação urbana há séculos.

Não entro nessa competição sem sentido de qual cidade brasileira possui o maior ou o melhor Carnaval. É uma perda de tempo. Há mais… trata-se de uma liga carnavalesca de cidades, que cria um traçado invisível costurando muitos centros urbanos brasileiros, que fazem do Carnaval uma maneira de aperfeiçoar a vida urbana. Percebam: o Carnaval é um fenômeno que não ocorre fora das cidades.

Na cidade, “polimos uns aos outros e eliminamos nossas arestas e asperezas por uma espécie de colisão amigável”, escreveu o conde de Shaftesbury, em 1711. Se você teve o prazer de ser um pouco “badaud” nesse Carnaval, especialmente em Belo Horizonte, pode perceber que, ano após ano, o principal ganho carnavalesco que temos é a convivência. 

Há um papel do poder público na organização que evita o que se quer evitar, mas conviver numa cidade é um aprendizado que só se tem andando pelas ruas e “colidindo” com outras pessoas, atividade que se amplia durante esses dias. Aos poucos, tenho esperança, haverá menos xixi inadequado e mais interação urbana. Não há banheiro químico suficiente que dê conta de quem não percebe que o espaço público é de si próprio.

O filósofo David Hume afirmou que os homens e as mulheres que “se bandeiam para as cidades” vivenciam “um aumento de humanidade, pelo hábito de conversar entre si, contribuindo para o prazer e o entretenimento umas das outras”. Para além do carinho enorme que este “flâneur” carnavalesco aqui recebeu nos últimos dias dos seus concidadãos, o que mais me deixou alegre foi ver Belo Horizonte fazendo a civilização evoluir, transformado essa invenção humana, a cidade, num espaço onde o ser humano percebe a liberdade, o tipo de condição que não se consegue sozinho. 

Carnavalizemos cada vez mais as cidades brasileiras. Essa é uma contribuição para a história urbana maior do que podemos perceber ainda em vida. “Karnevalluft macht frei”.

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Gabriel de a a z

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