A democracia não pode ser reduzida à disputa eleitoral
Três taxistas me cobraram a corrida nesta semana dizendo-me que não estavam mais aceitando o pagamento por Pix. Quem acha que o problema vai terminar com uma medida provisória engana-se. Há uma questão pior do que a própria economia a ser tratada: chama-se “credibilidade”. E não é só no tema fiscal.
Oito de janeiro… é data para se marcar na história? Criminosos golpistas promoveram um quebra-quebra em Brasília na esteira de uma tentativa de golpe que não vingou. Quantas outras vezes o Brasil vivenciou isso? Muitas! O Estado democrático de direito seguiu. Julgue-se.
Todavia, em 31 de março de 1964, sem nenhum item danificado na Praça dos Três Poderes, golpearam o Brasil. Extraditaram. Mataram. Torturaram. Silenciaram.
Nesta semana, a nossa República Federativa completou 40 anos sem ditadura. Em 15 de janeiro de 1985, Tancredo Neves foi eleito por um Colégio Eleitoral montado para manter os militares no poder. O que o governo federal fez para exaltar a data? Não houve ato, nem artigos, nem postagens. Será que o esquecimento da data ocorre pelo fato de o Partido dos Trabalhadores (PT) não ter apoiado Tancredo? É mais importante manter vivo um conflito eleitoral ou exaltar de fato a democracia? Nesse 15 de janeiro, o assunto foi o Pix, dado que democratizar não gera engajamento. Seguimos uma nação de consumidores, não de democratas.
Um dos feitos louváveis na gestão Dilma Rousseff foi criar a Comissão Nacional da Verdade. O relatório final apontou 434 casos de desaparecimentos e mortes sobre a responsabilidade do Estado, com 377 agentes envolvidos. Assim se faz. Contudo, pode-se fazer mais.
O Chile criou duas comissões para investigar as violações cometidas durante a ditadura de Augusto Pinochet. Os três volumes da nossa única comissão brasileira são acessados em https://www.gov.br/memorias reveladas e poderiam seguir o exemplo chileno, que criou um espaço físico para utilizar fatos e memórias para educar o próprio povo.
Vencedores de um concurso, os arquitetos Carlos Dias, Lucas Fehr e Mario Figueroa apresentaram o projeto, datado de 2008, concebendo o Museu da Memória e dos Direitos Humanos, inaugurado em 2010, que ainda conta com o Ministério de Educação do Centro Matucana a ser construído.
Visitei o Museo de la Memoria y los Derechos Humanos dias atrás. Na entrada, lê-se a seguinte frase de Michelle Bachelet: “No podemos cambiar nuestro pasado. Solo nos queda aprender de lo vivido. Esta es nuestra responsabilidad y nuestro desafío”. O Brasil pode fazer o mesmo, pois não se muda o passado, mas se aprende com ele.
No museu, os momentos do golpe hora a hora, com a última transmissão do presidente Salvador Allende, antes de ser encontrado morto no Palácio de La Moneda. O Brasil pode fazer o mesmo, pois não é difícil reproduzir o cortejo de tanques com a fala do senador Moura Andrade declarando vaga a Presidência. Há uma enorme galeria com o passo a passo da ditadura chilena através dos seus atos horrendos contra o próprio povo. O Brasil pode fazer o mesmo, pois não faltam provas da arbitrariedade, da censura e das prisões.
Há também um amplo espaço dedicado à redemocratização chilena, que, por meio de um plebiscito realizado em 5 de outubro de 1988, quando o Brasil promulgava nossa atual Constituição, disse “no” para Pinochet. O Brasil pode fazer o mesmo, pois não falta o que se expor sobre a campanha pelas eleições diretas para presidente, que, mesmo fracassando, gerou a energia social para a eleição indireta de Tancredo Neves em 1985.
Há um paredão emocionante com as fotos de todas as vítimas da ditadura chilena. O Brasil pode fazer o mesmo, pois não faz sentido toda uma geração ir ao cinema sem saber qual é o enredo do último filme que virou sucesso internacional.
O que o Brasil não pode fazer é reduzir a democracia a uma disputa eleitoral. E condicioná-la ao governo atual. Essa atitude não vai minar mais só a credibilidade. Vai erodir o próprio regime democrático, que não tem dono. Não deveria ter.