Praças que fazem a democracia: análise sobre novas formas de aprender o espírito democrático

Por: GUILHERME HENRIQUE MAGALHÃES DA SILVA – UFMG

“A democracia é algo barulhento”, me disse Gabriel, com um rosto sorridente, enquanto um grupo de pessoas debatia qual a melhor forma de governar a nação que surgia no coreto da Praça da Assembleia. Naquela manhã de domingo, ocorria mais um encontro da dinâmica pro- movida pelo vereador belorizontino, “Democracia – livros e praças”. O projeto, que ocorrerá ao longo de 2019, trouxe para o universo de mais de 100 pessoas um conjunto de leituras, exercícios e práticas que tentam vencer um desafio: a construção de sujeitos, que não só saibam o que é uma democracia, mas que também sejam parte do esforço de construção contínuo que ela demanda.

Como qualquer iniciativa, a dinâmica do professor e vereador apresenta limites e possi- bilidades. O artigo a seguir pretende entender como a ocupação dos espaços públicos por sujei- tos que foram unidos com o apoio da internet pode auxiliar no fortalecimento de um ideal de- mocrático, que seja compartilhado entre diferentes pessoas. Afinal de contas, se a política é feita todo dia, até mesmo nos momentos em que ela não é feita intencionalmente, o melhor é que ela seja democrática, republicana e tolerante.

A conquista da cidadania na sociedade contemporânea

O que é uma cidadania democrática? Para Cicero Araújo, uma forma de viver que seja correspondente a esta expressão está baseada em três ideais normativos. O civismo, o plebeísmo e o pluralismo. Juntos, eles nos guiam para uma sociabilidade mais tolerante, que acelera con- tinuamente a expansão da cidadania para o outro, e que tenha o exercício desta cidadania como um ideal fundamental para a vida humana.

Tais “guias morais” são complementares e, ao mesmo tempo, conflituosos. Afinal de contas, é a sua existência em conjunto que leva a um cenário em que elas entram em permanente tensão. Portanto, o maior desafio da sociedade moderna está em organizar um Estado Demo- crático que saiba valorizar tais componentes de modo harmonioso.

Mas para se definir quem terá direito à vivência democrática é preciso, antes, definir quem tem direito à cidadania. E esta não é uma pergunta fácil de responder. Afirmar quem é povo (e consequentemente quem é cidadão e tem o poder de influenciar na soberania popular) é um processo que envolve lutas, posicionamentos políticos e exclusões.

O povo (enquanto um conjunto de pessoas com direitos), afinal de contas, não é algo fixo em nenhuma sociedade. A definição de quem faz parte do corpo de pessoas que merecem o seu direito à cidadania está em luta contínua e, em muitos casos, depende do que é feito por aqueles que vencem as batalhas de um país. Como consequência, as sociedades em processo de construção de cidadania democrática são marcadas por uma luta contínua pelo grupo dos que são o povo, aqueles que estão fora da definição de povo, e os que lutam para incluir ou excluir pessoas de tais categorias.

As manifestações no espaço público, neste contexto, são um dos exemplos de ações em que um grupo de pessoas reivindica para si o caráter de representantes do “povo” e dos que fazem parte da sociedade. Mas, ao mesmo tempo em que elas se colocam como legitimamente capazes de apontar quem são os que merecem a cidadania, elas também podem ser apontadas, pela opinião pública, como uma manifestação dos inimigos da nação. A depender do nível de liberdade política, quem se posiciona contra determinadas ações pode ser associado a “ideias extremistas” e colocado como alguém que está contra os interesses do país. Nestes cenários, a cidadania daqueles que lutam por reconhecimento é eliminada e eles deixam de ter o seu caráter de “membros do povo” reconhecidos pela sociedade.

Compreender como este fator se articula em cada sociedade é fundamental para com- preender como uma democracia é estruturada – e quais são os passos necessários para ampliar o seu nível de cidadania. A legitimidade de qualquer governo democrático (e das instituições que o sustentam) são inerentes ao nível de reconhecimento que cidadãos tem em relação ao sistema político. A expansão do grupo de pessoas consideradas cidadãs é algo que deve ser desejado, não só por aumentar o número de pessoas aptas a participarem na esfera pública, mas também por ampliar a capacidade da democracia proteger-se contra aqueles que se mobilizam a favor do autoritarismo.

Em outras palavras, apesar da ampliação da cidadania envolver sempre a demarcação de fronteiras, a democracia ainda é um regime que vale a pena. Não é perfeita, mas é melhor do que as alternativas que levam o Estado ou a iniciativa privada a dominarem todos os aspectos das nossas vidas.

A luta pela democracia e pela cidadania é uma luta que sempre envolveu múltiplos campos de ação. Ruas, livros, praças, panfletos, bares e até mesmo bordéis, são alguns dos lugares em que a experiência democrática se fez ao longo dos últimos séculos. No mundo con- temporâneo, as articulações pela definição de quem pode ser cidadão são marcadas por intera- ções de tecnologias multimídia, ações práticas, mecanismos discursivos e performáticos. Elas relacionam-se com a mídia e com o governo, em busca de espaço e hegemonia. Em última instância, buscam a legitimação por meio do Estado e da esfera pública, como membros de uma sociedade.

Neste processo, a própria democracia é fortalecida. Laços de confiança são criados entre aqueles que participam das lutas por mais cidadania. Um novo grupo de pessoas se reconhecem como iguais e como merecedores de direitos. Não seria errado dizer, portanto, que aqueles que lutam pela sua cidadania lutam, também, por uma sociedade com um regime democrático mais robusto.

Democracia: uma obra não natural que merece ser conquistada

Sumida durante longos períodos na Europa, a democracia retomou o cotidiano das pes- soas aos poucos, como uma goteira que lota um balde de água, e transbordou de um modo nunca visto. Chegamos a nos acostumar com a sua naturalidade, apesar de ser apenas mais uma das várias invenções políticas humanas.

Mas o fascismo não é a única serpente que tenta envenenar a democracia e que está sempre pronta para ser chocada. A praxis política autoritária, que se constrói dentro das socie- dades democráticas com um discurso contra a tolerância e os valores que este regime exige, ganhou força e destaque nos últimos anos. Quando o liberalismo e a globalização mostraram os seus limites e falharam em proteger os perdedores, o “guarda da esquina”, autoritário e antili- beral, acenou àqueles que se viam excluídos dos avanços, e deu a eles uma oferta de futuro que brilhava como ouro – ainda que a ausência de liberdades marcasse o metal dourado como piche.

A vitória de presidentes de viés populista e autoritário demonstram que lutar pela de- mocracia, ampliar a valorização do espírito democrático e garantir que as suas virtudes sejam valorizadas se tornou algo crítico. Para ser efetiva, a luta deve se dar em várias esferas, afinal de contas a destruição dos valores, instituições e elementos necessários para a construção da democracia atinge todas as áreas de nossa vida. Da ocupação de parques aos memes de internet, todos os mecanismos que estão à disposição dos democratas devem ser utilizados para lembrar que as pessoas podem acabam com a democracia a qualquer instante.

A ação, porém, não deve ocorrer sem os suportes necessários. A luta por espaço político, e consequentemente, pela democracia, começa nas articulações que fazemos. Afinal de contas, as assembleias existem na medida em que grupos se apoiam por um objetivo em comum, inde- pendentemente de qual ele seja.

Além da luta por suportes corpóreos para a execução de qualquer ação, é necessário buscar um espaço de aparecimento. O reconhecimento dos corpos excluídos da democracia como aqueles dignos de cidadania se dá na medida em que eles se inserem, tomam para si ou criam um espaço público em que as suas demandas possam ser ouvidas. A escuta, aqui, se dá em um caráter que vai além daquele que envolve a linguagem escrita ou falada: corpos existem e se manifestam como resistência no gesto, na congregação, no posicionamento silencioso frente à possibilidade de violência ou mesmo no corte de cabelo.

O que se propõe aqui, não é a não-existência dos corpos que são excluídos oficialmente da esfera pública. Os excluídos da democracia agem politicamente, ainda que a sociedade não os considere como cidadãos. Mas a sua legitimação – em uma visão ampla – se dá apenas quando a maior parte da sociedade os reconhece como tal.

A conquista desta legitimidade se dá em passos pequenos. Quando pessoas ocupam um prédio público, elas criam para si uma nova esfera de ação política que independe da aceitação da opinião pública. A sua legitimidade, enquanto local de vivência democrática, se dá pelo simbolismo que existe na conquista de um espaço como um ambiente de todos, e não pelo “reconhecimento oficial” do poder estatal. Uma vez que este espaço ganha solidez, os barulhos de suas vozes torna-se tão forte que o poder público se torna obrigado a tratá-los como legíti- mos. Neste instante, o grupo toma para si o seu direito de existência em um ambiente democrá- tico, amplia o nível de participação da cidadania e garante mais liberdade para a sua vivência.

Ao fim e ao cabo, a luta pela democracia e pela cidadania se dá dentro e fora dos ambi- entes considerados como os locais legítimos, com corpos articulando-se pela sua sobrevivência e pelo seu direito de sobreviver. Uma vez bem executado, este processo conseguirá recuperar laços de confiança, áreas de debate público e espaços coletivos que estão imunes à sua privati- zação por interesses políticos e/ou econômicos. Será revertido o processo em que os sujeitos políticos se voltam aos seus próprios interesses, direcionando sua atenção para valores que não acrescentam o nível de participação política ao seu redor. Em última instância, cerceiam a sua liberdade e a daqueles que o fazem mover-se politicamente com base no rancor.

O personagem: Gabriel, o vereador que faz política nacionalmente

Gabriel Sousa Marques de Azevedo tem 33 anos. O “filho da Dona Carminha e do Sô Gilsu”, costuma dizer que, no instante em que o médico responsável pelo seu parto lhe deu um tapa na bunda, recebeu como resposta não um grito, mas um pedido de voto. Não é algo de se duvidar: Gabriel faz, pensa e age como pessoa política em caráter permanente.

Quando ainda aluno do Colégio Militar, articulou para obter os recursos e apoio neces- sário para reformar o espaço para hipismo do Colégio. Fez Comunicação Social e Jornalismo na PUC, além de Direito nas Faculdades Milton Campos – lugar em que também se tornou mestre na área, foi membro do diretório acadêmico e promoveu eventos e debates. Enquanto se dividia entre o Coração Eucarístico e a fronteira de Belo Horizonte com Nova Lima, deu os seus primeiros passos na política institucional, filiando-se ao PSDB e indo às ruas contra o PT, ainda que Lula batesse recordes de aprovação.

Diploma em mãos, Gabriel foi assessor da presidência do Clube Atlético Mineiro, sub- secretário da Juventude de Minas Gerais e parte de três vitoriosas eleições (uma para governa- dor e duas para prefeito). Foi também um dos fundadores da Turma do Chapéu, grupo de ação política ligado ao PSDB que teve um impacto direto nas eleições de 2012 e 2014.

Atuando como professor, deu aula de Direito Constitucional e Direito Internacional Pú- blico em três faculdades (Milton Campos, Newton Paiva e Faculdade Batista). Ao mesmo tempo, se tornou membro do RenovaBr, da Jusbrasil, da Fundação Lemann, da RAPS, do Livres e do canal MyNews.

As articulações feitas ao longo de vários anos, assim como a presença contínua – e pio- neira – na internet deram a Gabriel uma notoriedade pública que muitos invejariam. Seguindo a sequência de campanhas vitoriosas, foi eleito vereador por Belo Horizonte em 2016. Os com- promissos do novo cargo não impediram o político de abandonar suas ações públicas: manteve as aulas de Teoria do Estado, as articulações com grupos de renovação política e as postagens contínuas na internet, além de uma coluna em um impresso da capital. Por acreditar que a de- mocracia se vive, juntou-se a Augusto Franco para planejar e executar a dinâmica “Democracia – livros e praças” ao longo de 2019, base da discussão deste texto.

Na capital feita para a Primeira República uma democracia é construída

Belo Horizonte é uma cidade de simbolismos. Se tudo tivesse saído mais ou menos como planejado pelos seus criadores, quem descia pelo trem na Estação Central no meio da década de 1940 seria recebido pelo Monumento à Civilização Mineira pois é importante lem- brar que nesta capital a história se faz e, eventualmente, é lembrada. Se subisse a rua da Bahia, o recém-chegado passaria pelos principais pontos de discussões políticas, intelectuais e literá- rias da cidade. No término da caminhada, estaria ao lado do palácio de governo, que sintetiza o espírito de quem construiu uma capital para a Primeira República, com os centros de poder acima dos centros de religião.

Descendo a avenida João Pinheiro, indo da Liberdade para a República (hoje Afonso Arinos), o visitante notaria que as praças da cidade também reproduzem os ideais de quem a construiu. As duas, aliás, em poucas décadas viraram os principais pontos de lutas e protestos políticos, que em vários momentos nada tinham de pró-liberdade ou pró-república. Mas se o turista estivesse preocupado com o federalismo, bastava virar à sua esquerda e se direcionar à Praça da Federação (hoje Praça Carlos Chagas/da Assembleia). Porém, se estivesse procurando a “Praça da Democracia”, não a encontraria: uma vez utilizados os nomes que remetem à polí- tica, os criadores da Cidade de Minas direcionaram a sua criatividade para dar nome às praças relembrando datas e personagens marcantes da nação Brasileira.

Divididas pela área interna da avenida do Contorno, as praças belo-horizontinas contam e fazem história. Se tornaram locais de protesto, namoro e articulação política. Mas, para Ga- briel, que não nega o seu simbolismo1, elas podem ser transformadas em um laboratório de experiência democrática e cidadã.

A inspiração surgiu a partir de uma constatação que se demonstra absurdamente trans- parente nos últimos anos: a maioria dos brasileiros não sabe o que é democracia, e aqueles que sabem, não necessariamente pretendem ser democratas. Há pesquisador que afirme, inclusive, que as saídas autoritárias são a primeira opção de muitos em momentos de crise. Ser democrá- tico, como comenta Gabriel, é como a amizade. Não há um manual que explique a vivência prática, no máximo o significado do conceito – e o leitor há de concordar que aprender conceitos jamais implicou na sua incorporação.

Quinhentas pessoas foram chamadas para participar no primeiro encontro, na Praça do Papa. Ao término de todas as atividades, duas pessoas serão convidadas para viajar para Lon- dres, Atenas e Chicago. “Saber os locais em que a democracia moderna foi formulada é tão importante quanto saber como ela funciona”, justifica Gabriel ao ser questionado sobre os seus destinos.

O grupo que frequenta as praças é diverso. Os atuais 300 participantes se dividem entre eleitores e seguidores de Gabriel Azevedo nas redes sociais. O perfil de todos é diversificado. Há aqueles que ainda estudam (sendo a maioria futuros bacharéis em Direito), e há aqueles que estão prestes a se aposentar. Também existe o grupo dos que querem se candidatar nas próximas eleições, e os que entraram para grupos como o Renova apenas após o começo das dinâmicas.

A bibliografia (listada no final do texto) foi formulada pensando em um grupo de dez pensadores que conceituam a democracia como a desconstrução da autocracia. Hannah Arendt divide espaço com Alex de Tocqueville e Spinoza. De Sócrates, Gabriel lembra que as virtudes são importantes na hora de se fazer política (mas não caem do céu). De Alex de Tocqueville, busca-se a inspiração nos americanos que fundaram uma das democracias mais antigas da atu- alidade.

O grupo de pessoas foi dividido conforme as regionais de Belo Horizonte, enquanto um especial foi criado para aqueles que não são moradores da capital. Tratados como unidades federativas, os dez grupos formaram a “República Federativa das Regiões Unidas de Belo Horizonte”, uma nação fictícia com dez estados, governo republicano, estrutura federativa e que exerce a sua política em um modelo parlamentarista unicameral. Há inclusive uma Constituição assinada por representantes de cada unidade.

A divisão de grupos também auxilia o vereador a distribuir as tarefas que são repassadas ao final de cada visita. Após saírem da Praça da Assembleia, por exemplo, deveriam realizar uma ação educativa nas suas regionais. Em outro encontro, foram convidados a montar um jornal, com coluna de opinião e comentários sobre os livros. O impresso, ao contrário dos pan- fletos distribuídos pelos revoltosos no Brasil colonial, deveria ser entregue a pessoas sem medo de repressão pelo Estado.

Ao sair das salas de aula e se direcionar às praças da cidade, cria-se uma nova forma de educar, com foco na relação das pessoas com a cidade e o bem público. As pessoas que ali se encontram não só discutem um livro ou fazem um exercício. Elas aprendem, de maneira prática, como uma nação se constrói e o que é necessário fazer para mantê-la de modo democrático.

O espaço público, neste cenário, se torna o local de ação dos corpos que aprendem a vivência democrática com pequenos exercícios práticos. A apropriação destes locais é feita de modo contínuo, do instante em que todos se unem para coletar o lixo da praça do Papa ao momento em que eles se apropriam de um ambiente para discutir livros que falam sobre a de- mocracia e seus inimigos. Em outras palavras, as praças são importantes por darem às ações da dinâmica um ambiente performático que se intercala com outras pessoas e amplia a capacidade da ideia de Gabriel Azevedo em demonstrar que é possível conviver em um espaço de tolerância e pensar democrático.

Laços que fazem o sentimento democrático

Em uma época de contínuo recrudescimento da democracia e dos sentimentos antide- mocráticos, o esforço de Gabriel Azevedo em trabalhar os fundamentos democráticos nas pra- ças públicas é, no mínimo, louvável. O vereador construiu uma dinâmica capaz de lembrar que uma sociedade democrática, plural e republicana é o resultado do esforço de muitas pessoas – e algumas vezes das vozes que gritam mais alto.

A experiência – sem exemplos semelhantes recentes – deu tão certo que já é replicada em algumas cidades e, ao mesmo tempo, inspirou pessoas a participarem dos próximos pleitos eleitorais. Político que sabe do seu papel no espaço público, Gabriel não nega que o projeto pode trazer votos ou participantes para as suas iniciativas.

Entretanto, quando questionado sobre o tópico, o vereador relembra o seu aprendizado das aulas de publicidade e responde que, como meio de angariar apoio eleitoral, o projeto é um péssimo investimento. Há uma dedicação de 30 dias e um investimento financeiro que, se com- parados com a sua própria campanha para exercer a vereança em Belo Horizonte, indicariam um péssimo retorno sobre o investimento.

Se considerarmos que o anúncio da viagem foi realizado dois dias antes do encerra- mento das inscrições – quando a maioria das pessoas já estavam inscritas apenas pelo desejo de participar e não pelo incentivo do passeio pago pelo vereador – e que muitos não viajarão mesmo que fossem selecionados, o projeto se torna um farol de esperança. Afinal de contas, quem acorda em uma manhã de domingo sem um retorno claro que vá além daqueles obtidos com as leituras e conversas certamente tem um profundo desejo de compreender como as de- mocracias funcionam na prática.

Como aponta Sergio Abranches, as democracias vivem sob risco. Frágeis e resilientes, “o ápice de engenharia humana no processo de construção de convivência baseado na igualdade” pode sucumbir ao autoritarismo a qualquer momento e, quando isto ocorre, o esforço para retomar a liberdade é sempre maior do que aquele que foi necessário para capturá-la.

Em um país em que a participação democrática de muitos está resumida a apertar uma sequência de botões a cada dois anos, a reunião voluntária de um grupo de pessoas, em uma manhã de domingo, para pensar, construir e viver a democracia é exceção, não regra. Os laços de confiança ali criados se fecham independentemente do posicionamento político dos que es- tão presentes. Afinal de contas, ainda que algumas tarefas dos encontros envolvam o debate de ideias, elas são estruturadas para criar um sentimento de valorização da vivência baseada na tolerância e no espírito democrático, na ação política e no trabalho pautado pela mentalidade republicana e cidadã.

Tais laços reforçam algo que, ao contrário do que o pensador Francis Fukuyama um dia afirmou, a democracia liberal não é (em sua essência) e não se tornou (em sua vivência) natural. No momento de maior esgotamento dos valores iluministas e das promessas de prosperidade do liberalismo pós-URSS, a democracia é contestada e tem os seus limites testados, moldados e dobrados pelo autoritarismo populista.

As crises se retroalimentam, os governos adotam programas que correm por dentro e exigem que pessoas se mobilizem em todas as esferas para defendê-la. O Brasil, em específico, vive há sete meses um governo que valoriza apenas a simbologia do autoritarismo e do caos. No meio de uma de nossas maiores crises econômicas do período republicano e no instante em que a corrupção corrói a confiança de muitos na classe política, o presidente eleito trabalha cotidianamente para corromper os valores democráticos e lutar contra as instituições que vali- dam a estabilidade do regime nacional.

Fora do país, há um conjunto de governos e políticos que não fogem ao discurso de Jair Bolsonaro. Até mesmo nos Estados Unidos, nação com um sistema eleitoral moldado para evi- tar que pessoas não adequadas ao cargo sejam eleitas, tem um presidente autoritário, populista e pouco afeito a valorizar os sentimentos democrático-liberais.

Para aqueles que não compartilham com a opinião do presidente sobre a democracia liberal, há uma esperança. As resistências e tentativas de luta existem e continuam a existir. Sujeitos ocupam espaços e lembram ao Estado que eles também têm o direito a ter direitos. O seu direito de viver de forma justa, livre e social-democrática é conquistado em ocupações, protestos e marchas por mais direitos, mais república e mais cidadania.

O grupo de jovens que ocupou as escolas de São Paulo há alguns anos o fizeram para reivindicar, para si, o bem público. Os adolescentes, de maneira autônoma, se apossaram os espaços de ensino estatal para lembrar ao governo que aqueles locais foram construídos para eles e, para eles, deveriam servir. Naqueles dias, viveram a luta por uma república que não deixa aqueles que mais demandam apoio de lado.

Em Belo Horizonte, os jovens que criaram a Praia da Estação ocuparam o espaço pú- blico como local de experiência cidadã. Repensaram uma das praças mais antigas e tradicionais da cidade como local de lazer, e não de circulação controlada para fins privados. Lembraram ao prefeito da vez que ele não conseguiria limitar o acesso de espaço de convivência de todos com facilidade.

Ao levar pessoas para praças da cidade, Gabriel Azevedo reforça uma das coisas mais importantes para a vivência democrática dos que muito provavelmente não compactuam com as mesmas ideias, que é o espírito democrático. Se compreendermos as reuniões como um novo tipo de assembleia (voltado para inspirar o desejo por democracia e não necessariamente por

direitos específicos), cada encontro passa a ser um ambiente de soberania popular. Elas legiti- mam e enquadram os que dela participam como democratas de espírito cívico e que tem como missão trabalhar, ao lado de Gabriel Azevedo, para o fortalecimento da democracia nacional.

Se os acertos continuarem, a iniciativa conseguirá criar um grupo de pessoas que enten- dem que a democracia liberal se defende não só com a circulação de ideias ou a valorização dos espaços públicos onde podem ser compartilhadas – outros dois pontos que são trabalhados nas experiências de domingo –, mas também com a mobilização cotidiana em defesa de instituições que há muito não estão funcionando como deveriam.

LIVROS UTILIZADOS NA DINÂMICA:

ARENDT, Hannah. O que é política? DAHL, Robert A. Sobre a democracia. DEWEY, John. Democracia cooperativa. LEFORT, Claude. A invenção democrática.

MATURANA, Humberto, VERDEN-ZOLLER, Gerda. Amar e Brincar. MILL, John Stuart. Sobre a liberdade.

TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. SPINOZA, Baruch de. Tratado teológico político.

STONE, I. F. O julgamento de Sócrates.

SEN, Amartya. Democracia como valor universal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS:

ABRACHES, Sérgio. Democracia líquida. Blog do Matheus Leitão. Disponível em <https://g1.globo.com/politica/blog/matheus-leitao/post/2019/05/19/democracia-li- quida.ghtml>. Acesso em: 30 jun. 2018.

ARAÚJO, Cícero. “República e Democracia”. Lua Nova: Revista de cultura política, n. 51, 2000

BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

Democracia: Realidade e Ficção Fliaraxá 2019. [Locução de]: Heloisa M. M. Starling, José Eduardo Agualusa, Sérgio Abranches. Araxá: Fliaraxá Podcast, 21 jun. 2019. Disponível em:

<https://soundcloud.com/user-519730541/democracia-realidade-e-ficcao-fliaraxa-2019> Acesso em: 25 jun. 2019.

MOISÉS, José Álvaro. Cultura política, instituições e democracia: lições da experiência brasi- leira. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 23, n. 66, 2008, pp. 11-43.

STARLING, Heloisa M. M. O passado que não passou – entre o golpe de 1964 e as eleições de 2018. In ABRACHES, Sergio et al. Democracia em risco? 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

Se o impensável acontecer, mantenha a calma. Serrote, v. 31, p. 4-20, 2019.

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