Abidan Henrique e meu longo inferno astral

Processos de cassação, princípios e defesa da democracia

Nascido num bairro na periferia da capital paulista, Abidan Henrique enfrentou muitos desafios até ser eleito vereador no município de Embu das Artes, em São Paulo. Assim como milhares de outros candidatos por todo o Brasil, ele foi meu aluno na escola que prepara pessoas para as eleições, o RenovaBR, no qual hoje também sou estudante.  

Lembro-me bem de ver o brilho nos olhos dele ao narrar suas ideias para um mandato na Câmara Municipal e, como fiz com tantos outros, tentei contribuir com algumas estratégias para a sua campanha. Naquele 2020, ele se elegeu pelo PSB, aos 23 anos. Tornou-se o único vereador que não compunha a base de apoio ao prefeito. 

“Quebra de Decoro”

No ano passado, ele denunciou uma manobra orçamentária da prefeitura para custear um show na cidade. Durante uma sessão, seus colegas esvaziaram o plenário para não permitir que ele apresentasse as provas do que dizia. E, na sequência, durante uma entrevista, meu aluno comparou a atitude com o comportamento de um “bando de ratos”. Por tal, foi acusado de quebra do decoro. Um processo de cassação foi aberto, e ele foi cassado na semana passada, logo após dizer: “Se falar a verdade ao criticar a prefeitura, pedir por melhorias para a cidade e lutar pelo povo for crime, eu pago o preço que for. Tenho coragem para isso”.  

Pagou caro. A cassação lhe impõe, além da perda do mandato, o prazo de oito anos sem direitos políticos. É um “ostracismo” sem sentido e que ele tentará reverter na Justiça. Com a minha ajuda, já aviso. Sempre digo nas minhas aulas para quem deseja se candidatar a qualquer cargo que nós podemos perder eleições, mas não podemos perder os princípios que nos fazem disputá-las. 

Pedidos de Cassação

No dia 12 de março de 2024, completarei 38 anos e jamais imaginei que viveria o que se passou de 4 de setembro de 2023 a 4 de março de 2024. Um inferno astral com labaredas terríveis, que durou meio ano. Foram abertos dois pedidos de cassação do meu mandato por quebra de decoro parlamentar e, em ambos, palavras que pronunciei em entrevistas concedidas foram utilizadas como motivo. 

Como toda a saga foi amplamente noticiada, não há necessidade de rememorar os meus antagonistas. Todavia, é fundamental destacar um dos objetivos da trama: submeter o Parlamento da cidade aos caprichos da prefeitura. Afinal, é raro, é muito raro, é raríssimo encontrar uma Câmara Municipal independente no Brasil, isto é, um Poder Legislativo que não faça apenas as vontades do Poder Executivo. Os motivos são muitos para que isso aconteça, mas podem se resumir na baixa compreensão do papel de um vereador somado ao desejo de vencer eleições com o apoio da máquina administrativa. Essa mistura pode gerar enormes problemas. 

Restou provado que não existiam razões (tampouco votos) para que minha cassação ocorresse. No entanto, não fosse um grupo de 15 vereadores que se negaram a aceitar todos os tipos de ofertas possíveis em troca do voto, aliados a advogados que são brilhantes, além de vultosa rede de apoio, eu seria parte de uma estatística: mais um vereador cassado no Brasil de maneira injusta. 

Municípios e defesa da democracia

Há 5.571 municípios. Poucos contam com a atenção da mídia nacional. No entanto, basta uma pesquisa para perceber que o instrumento da cassação de mandatos virou ferramenta corriqueira no jogo político. Isso é uma tragédia, posto que muitos dos casos somam uma agressão da maioria sobre a minoria, uma imposição da base de governo sobre quem não faz parte dela, uma intervenção brutal de um poder sobre o outro, além de interesses mais nefastos. 

O Decreto-Lei 201/1967, herança do período ditatorial, é a norma que sustenta o rito que conduz um parlamentar para esse fim duro. Há quem mereça ser cassado por más práticas no exercício do mandato parlamentar? Com certeza. Isso, no entanto, não pode ser banal. E foi o que disse ao meu amigo Rodrigo Pacheco, presidente do Senado Federal, numa visita anteontem ao seu gabinete no Congresso Nacional. Como ele abraçou a ideia de modernizar essa legislação, criarei um grupo disposto a apresentar um anteprojeto de legislação para mudar essa realidade. 

O mundo vive uma recessão da democracia liberal. Nove de cada dez pessoas não vivem sob esse tipo de regime. É grave. Quando cidades perdem vozes diferentes, se dá o colapso do modelo de participação inventado em Atenas há mais de dois milênios para não concentrar o poder. Para evitar isso, é necessário um movimento democrático brasileiro. Ele existe e precisa ser fortalecido para consolidarmos as conquistas pós-ditadura militar e erguermos uma sociedade baseada em municípios independentes e livres. 

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Gabriel de a a z

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