O Papa das Cidades

Francisco e sua relação com as questões urbanas vivas

Quando a fumaça branca se ergueu em 2013, não foi apenas o primeiro jesuíta ou o primeiro latino-americano que emergiu como Papa. Francisco assumiu o trono de Pedro com um gesto silencioso que viria a ecoar em bairros esquecidos e periferias empobrecidas: escolheu seu nome não em homenagem a um rei, mas a um mendicante. E ali começava o mais urbano dos pontificados.

Francisco nunca escondeu seu olhar para as cidades. Para ele, o cimento das metrópoles não era obstáculo à espiritualidade, mas expressão de um mundo que clama por justiça. O Papa não falava apenas para os cardeais em Roma: falava para o catador de recicláveis da Avenida do Contorno, para a mãe solo no Borel, para o jovem migrante africano espremido no metrô de Paris. Seu evangelho não era de cúpula, era de esquina.

Nas encíclicas “Laudato Si’” e “Fratelli Tutti”, Francisco elevou a cidade a categoria teológica. Apontou a favelização do mundo não como destino, mas como denúncia: “A falta de moradia é uma vergonha global”, disse. Condenou a urbanização que expulsa os pobres para longe do que é vivo, chamando à conversão os que fazem da exclusão um modo de ordenamento urbano. Para ele, terra, teto e trabalho não são bandeiras partidárias – são direitos sagrados.

Foi o Papa dos três T’s. E o mundo entendeu. Ao visitar a comunidade de Kangemi, em Nairóbi, não ofereceu fórmulas prontas, mas reconhecimento: “os pobres têm sabedoria”. Em vez de paternalismo, partilha. Em vez de urbanismo de cima pra baixo, escuta. Francisco via nos becos e vielas a possibilidade de um urbanismo mais humano, mais fraterno, mais verdadeiro.

Também foi o Papa da mobilidade. Alertou contra a lógica do automóvel que isola e polui. Defendeu transporte público digno, não por nostalgia peronista ou socialista, mas por senso de justiça: quem passa três horas por dia num ônibus superlotado está sendo roubado do seu tempo de viver. E o tempo, para Francisco, é dom divino.

Na sua crítica ao modelo tecnocrático, denunciou o “mito do progresso” que destrói comunidades, consome energia não renovável e transforma bairros em desertos afetivos. Em contrapartida, propôs o que chamou de “ecologia do cotidiano”: calçadas seguras, praças de encontro, moradias integradas – a vida como ela deve ser.

Francisco entendia o mundo como um corpo e a cidade como seu rosto mais nítido. Onde há violência urbana, há violência estrutural. Onde há especulação imobiliária, há idolatria do dinheiro. Onde há segregação, há pecado social. E para cada uma dessas feridas, ele oferecia uma pastoral da cidade: não de igrejas monumentais, como tanto gostam alguns, mas de presença nas periferias. Registro uma de suas frases: “melhor ser ateu do que católico hipócrita”. E mazelas urbanas atrelam-se à hipocrisia cristã.

Ao convocar prefeitos do mundo para o Vaticano em 2015, o Papa não ofereceu indulgências, mas responsabilidade. Disse que os desafios do século XXI seriam vencidos das bordas para o centro. Defendeu que as cidades tinham papel decisivo na luta contra o colapso climático e a desigualdade global. Não era uma tese acadêmica. Era um chamado profético.

Francisco não verá as cidades do futuro que tanto defendeu. Contudo, deixou o esboço de um projeto radical: cidades que acolham, não expulsem. Que integrem, não isolem. Que cuidem das pessoas como se cuida da casa comum. No seu magistério, urbanismo e espiritualidade se tocam – como se fossem uma mesma praça iluminada. Em 2013, ouvi dele na Jornada Mundial de Juventude, no Rio de Janeiro: “Tenho confiança em vocês em irem contra a corrente. Também tenham a coragem de ser felizes”.

Se existe santidade nos tempos modernos, talvez ela esteja menos nas igrejas e mais nas calçadas. E ali, entre buzinas e becos, Francisco plantou sua semente. Agora, a nós cabe regá-la.

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Gabriel de a a z

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