Sobretudo Paulo Francis

Amizades e histórias para serem celebradas

Uma das minhas felicidades é colecionar amizades. Entre os integrantes mais preciosos dessa coleção está o belo-horizontino Lucas Mendes Campos. Em Nova York, ele inventou um produto jornalístico que celebrou 30 anos há algumas semanas: o programa “Manhattan Connection”.

Quando Seu Gilson, meu pai, contratou aquele cabinho branco que se conectava ao aparelho televisivo e trazia dezenas de canais disponíveis para além da TV aberta, parei no canal GNT numa noite de domingo e conheci aquela figura única: óculos com aspecto de fundo de garrafa e um cabelo cuja cor ainda não saberia definir, algo como “cor-de-burro-quando-foge”, fora o jeito de falar. Engraçado. Hipnotizante. Quem era? Franz Paulo Trannin Heilborn, ou só Paulo Francis.

Logo aprendi a gostar de Caio Blinder e Nelson Motta. Lucas Mendes era o diretor do show. Paulo Francis me arrebatou. Era saboroso assistir a análises dos principais fatos do planeta com intensa acidez e rara inteligência. O que não entendia motivava-me a frequentar a biblioteca, numa era em que não se acessava a internet. Foi também lá que saboreei muitos livros que ele escreveu.

Devo a ele o gosto por ópera. Foi de tanto ouvir as apaixonantes críticas que comecei a escutar ainda criança as dezenas de LPs que tinham ficado no apartamento em que vivia com a família e que pertenciam à proprietária anterior. Não só ouvia, mas acompanhava as letras dos encartes com dicionários bilíngues ao lado. Dona Carminha, minha mãe, comprou outros. E surgiu com isso o ato de abusar dos ouvidos alheios a cantarolar algumas árias.

Num domingo, liguei a TV, e Paulo Francis não estava mais lá. Enfrentou e venceu todas as batalhas judiciais por causa de comentários sobre a corrupção na Petrobras, tão fartamente revelada anos depois. Todavia, batalhar cansou seu coração. Deixou viúva Sônia Nolasco Heilborn, ao lado de quem morreu pela manhãzinha após ter lido até tarde “So Long, See You Tomorrow”, de William Maxwell.

Um mês antes, Paulo Francis esteve em Londres, onde comprou um sobretudo. Há quem prefira chamar “casaco”. Um belo corte. Um belo tecido. Jamais usou. Levou numa lavanderia e colocou no armário.

Desde que conheci Lucas Mendes, foi amor à primeira vista. Aliás, muitas das minhas amizades se dão assim, como paixões duradouras que surgem num clique. Na última sexta, ele voou de Nova York para BH para se somar aos mais de 600 convidados da minha festa de aniversário, divertidamente narrada no Aparte de O TEMPO.

Estava tão feliz, cercado de amor e carinho, que passei horas com um sorriso que não se desfazia no rosto. Comecei a abraçar pessoas que fazem parte da minha vida por volta das dez horas da noite e ainda estava fazendo isso lá pelas cinco da manhã. Era gente legal numa festa legal, num prédio legal, no centro de uma cidade fenomenal. E, claro, na confusão de enviar convites, amizades incríveis ficaram fora por culpa desse problema que todo mundo deveria ter: possuir muitos amigos numa lista confusa e desorganizada de WhatsApp. Desculpem-me.

Destaquei esse convidado pela distância percorrida e por outro fato; o sobretudo que Paulo Francis comprou e nunca usou está no meu armário embalado com o plástico da lavanderia. Usarei. Foi um presente recebido que confere a exata medida do grau de amizade que gosto de cultivar.

Consigo imaginar frases terrivelmente cáusticas e sensacionais que Paulo Francis poderia criar a respeito. Quando me presenteou, Lucas Mendes explicou e ficou em silêncio. Marejamos os olhos, e não dizer nada já dizia tudo. Este é um texto para ele, mas também é um texto para quem gosta de mim, mesmo com tantos defeitos, mesmo estando menos próximo do que eu deveria estar. 

Este é um texto de um homem que está em paz com a vida e com que ela lhe traz. Façam amizades. Cultivem-nas. Das muitas lições que esses 38 anos me deram, essa é uma que não tenho o menor senão ao compartilhar.

Sônia, prometo ser cuidadoso e não fazer como Francis certa vez, ao sair de um bistrô minúsculo, girando no ar seu casaco longo antes de vesti-lo, varrendo todos os copos e talheres das mesas vizinhas. Franz Paulo Trannin Heilborn tinha os mesmos 38 anos que acabo de completar quando a conheceu e segue vivo na memória de muitos de nós. Um beijo.

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Gabriel de a a z

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